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Em torno de 2004, o livro Código da Vinci de Dan Brown tornou-se “best-seller”, e as heresias nele contidas, colocadas “magistralmente” como verdades, causaram grande dano espiritual em pessoas que não tinham suficiente formação religiosa. O zelo do dirigente espiritual e fundador do Emaús de Florianópolis, Monsenhor Bianchini, levou a me solicitar uma análise detalhada do livro e posterior refutação dos erros nele contidos para a assembléia da escolinha semanal do grupo. Como havia no livro muita falsidade também em relação à Opus Dei, denegrindo a sua imagem, solicitei ao Marcelinho que abordasse esta parte da análise/refutação durante a minha palestra, o que executou com a sua habitual competência, de forma esclarecedora e inteligente. Explicou em detalhes o funcionamento e espiritualidade da Opus, até então pouco conhecida pelo grande grupo. Após minha chegada a Florianópolis (1998), meu primeiro contato com Marcelinho, talvez antes da virada do milênio, foi participar, a seu pedido, da escolinha de fé que ele havia fundado em sua paróquia, para estudo do Novo Catecismo da Igreja Católica, até então muito pouco conhecido e estudado pela maioria dos católicos desta cidade. Deu-me a tarefa de ministrar algumas “aulas” de assuntos que eu dominava. Era no salão da então sede paroquial do Sagrado Coração de Jesus, nos Ingleses, na entrada do Santinho, às 20 horas. Impressionou-me, na ocasião, o seu zelo apostólico, seu grande conhecimento da fé católica, sua grande gentileza, e principalmente aquele sorriso encantador que era sua marca especial. Posteriormente, nossos encontros tornaram-se freqüentes, principalmente no Morro das Pedras, por ocasião dos retiros dos quais ele era palestrante de escol. Lembrança inesquecível era a sua postura durante a Missa do Emaús na Imaculada Conceição. “Nossos lugares” habituais ficavam próximos (na frente lateral à direita), e eu admirava a sua devoção, principalmente ao comungar e adorar. Era contagiante, e me impelia a seguir seu exemplo, percebendo o seu “mergulho” no mistério eucarístico de amor. Nunca me esqueci da primeira vez que o vi retornar da Comunhão, trôpego, com aquele desequilíbrio que foi o primeiro sinal da sua doença que o deixou posteriormente paralítico. Fui visitá-lo quando ainda conseguia andar com muletas. Era o mesmo Marcelinho de sempre, com aquele sorriso cativante, irradiando paz, sem nenhuma queixa ou manifestação de preocupação ou temor, como se estivesse tudo bem… Não se referia à sua doença: seu foco não era a sua pessoa. Era como se, vivendo plenamente, não vivesse para si. Meu filho mais moço, ao voltar do Emaús, após a Missa de encerramento, abraçou-me emocionado dizendo da sua comoção ao ouvir palestra sobre Eucaristia proferida pelo Marcelinho “do mais alto que desceu mais baixo” – sic … Fui então agradecer ao Marcelinho porque este filho confessava mais vezes do que comungava, pois tinha dúvidas em relação à presença real de Cristo na Eucaristia. Marcelinho, com sua simplicidade e humildade costumeiras, não agradeceu meu elogio: referiu tudo ao Senhor Deus que opera maravilhas… Não podia deixar de estar no seu enterro. Vendo-o inerte no caixão, toquei meu rosário em suas mãos postas em oração, para ter uma relíquia, pois sabia que estávamos velando o corpo de um santo. Desde então, sempre peço sua intercessão, principalmente quando passo pelo cemitério onde se encontra sua sepultura, ali pertinho da SC 401, meu percurso habitual. Minha oração é sempre pedindo que interceda pelos egressos do Emaús, para que perseverem e principalmente por aqueles que se desviaram, para que voltem ao “rumo certo”. Conheci e admirei seu zelo apostólico e sei que atenderá minhas preces, continuando o seu “trabalho” no céu. Para quem me pergunta sobre as impressões mais marcantes acerca do Marcelinho, coloco antes de tudo o seu sorriso que transmitia permanentemente profunda paz, e sua gentileza constante. Irradiava a santidade de um verdadeiro Filho do Altíssimo”em grande simplicidade.
Conheci Marcelo Câmara em março de 1997, quando iniciávamos o curso de Direito na UFSC. De certa forma, minhas impressões originais a respeito do colega viriam a manter-se nos anos seguintes: uma profunda admiração, não raro permeada por certas doses de espanto. A primeira imagem, contudo, não foi exatamente positiva. Extremamente fluente, desde as primeiras semanas do curso Marcelo envolvia-se em debates contundentes, externando opiniões com as quais não concordava. “Temos um neoliberal na classe, que horror”, era o meu pensamento, não sem um ponta de admiração pela coragem demonstrada pelo colega ao levantar bandeiras minoritárias no ambiente universitário. Minha percepção refratária desapareceu pouco depois quando casualmente nos encontramos na Biblioteca Universitária. Foi uma tarde ótima, na qual, além de realizarmos a pesquisa, trocamos ideias sobre a universidade, o curso, o país, enfim, tudo. Afável e inteligente, Marcelo não tentava impor sua forma de pensar e demonstrava profundo respeito pela opinião alheia. Vascaíno – prova adicional de inteligência – e avaiano – porque ninguém é perfeito – transbordava entusiasmo, amor à vida e ao conhecimento. Tive a nítida impressão de que, se pudesse, ele viveria feliz dentro da biblioteca. Algo mudou no comportamento de meu novo amigo no segundo semestre de 1997. Suas ponderações nas disciplinas jurídicas prosseguiam, porém mais brandas. Já não se envolvia em debates de índole política. Aos poucos, quando necessário e, quase sempre enfrentando pontos de vista opostos de professores e colegas, Marcelo passou a defender posições que denotavam forte embasamento religioso de matiz católico. Não era proselitismo ou doutrinação. Eram pontos de vista bem embasados, trazidos para sala de aula em momentos nos quais a discussão jurídica e social, de alguma forma, tocava ou referia-se aos ensinamentos da Igreja. Foi neste período que ele passou a saudar seus colegas com o indefectível “Paz e Bem, meus caros”, que o acompanharia até o final de sua vida. Hoje sabemos, a partir da notável pesquisa da amiga Maria Zoê, que esta transformação pessoal teve lugar após sua participação em um retiro organizado pelo Movimento Emaús, no qual Marcelo abraçou a vivência da Fé de forma plena, coerente e incontornável. É deste período, também, um episódio inesquecível. Em disciplina ministrada por uma das grandes referências intelectuais do curso, o professor mencionou que o Papa João Paulo II agia como “delinquente” por sua pregação contra os métodos contraceptivos em países pobres. Marcelo pediu a palavra. A classe preparou-se para um embate sangrento, que, espantosamente, não aconteceu. Contrito e ponderado, com uma postura que irradiava dignidade, falando pausadamente, Marcelo disse que seria conveniente ao professor, até por sua titulação, guardar maior respeito no uso das palavras sobre pessoas e Instituições que poderiam não ser caras para ele (o professor), mas que certamente o eram para outras pessoas ali presentes. Ponderou sobre os fundamentos da posição da Igreja sobre contraceptivos e calou-se. Sinceramente, não lembro o que o Prof. Dr. respondeu – se foi um pedido de desculpas, a retirada das palavras hostis, ou uma justificativa sem importância. Era evidente a todos que a postura cordata, porém firme, de Marcelo sobrepujara a rudeza e a injustiça da crítica. De certa forma, neste e em outros momentos, sua postura suscitava a todos nós, “católicos praticantes mas nem tanto”, a reflexão pessoal sobre a coerência entre nossa prática e nossas convicções. Em 1998 passamos a integrar o Programa Especial de Treinamento, iniciativa de fomento à pesquisa na qual discutíamos textos pré-selecionados. Presenciei Marcelo discorrer e debater, por várias vezes, textos complexos com colegas mais experientes. Admiravelmente, nunca entrecortou seus argumentos com ataques pessoais contra eventual debatedor. Dotado de vasta cultura jurídica e humanística, nunca o vi desmerecer ou debochar de colegas ou professores que pensavam de modo diferente. Conseguia aliar honestidade intelectual e objetividade argumentativa com um profundo respeito à pessoa. Nunca deixou de expressar suas convicções, ainda que minoritárias, mas nunca ofendeu quem quer que pensasse diferente. Neste período, eu soube de seu envolvimento com o Emaús, para cujos retiros Marcelos convidou e conduziu dezenas de colegas da UFSC. Quando me convidou, resisti. Aos 20 anos, a ideia de um retiro soava-me muito estranha. No íntimo, no entanto, ficava orgulhoso com o convite, pela consideração pessoal que ele representava, e admirava seu esforço na convocação de novos participantes. Marcelo era extremamente solidário com seus colegas, apoio firme em todos os momentos. No PET, cada aluno encarregava-se de organizar uma palestra, aberta a toda comunidade, sobre um tema socialmente relevante. No evento organizado por mim, o palestrante confirmado não apareceu. Marcelo percebeu meu constrangimento, esteve comigo quando anunciamos que o evento não seria realizado, e me ajudava a desmontar toda estrutura quando alguns amigos começaram a conversar sobre a obsolescência do casamento no mundo moderno. De súbito, para espanto geral dos poucos que ali restavam, Marcelo passou a dissertar para ouvidos incrédulos sobre a sacralidade do matrimônio e a atuação da graça divina como suporte à felicidade e à fidelidade dos cônjuges. Encerramos a graduação em 2002 e era claro para todos que, por sua capacidade intelectual, Marcelo obteria sucesso em qualquer carreira que escolhesse. Assim como eu, também optou por cursar o Mestrado, mas outros compromissos profissionais fizeram com que meu amigo ingressasse no CPGD/UFSC apenas em 2003. Eu já estava lá e me divertia, pois, em poucas semanas, Marcelo era uma referência na Pós-Graduação. Havia uma situação reiterada: nas rodas de conversas, meus queridos colegas do Mestrado, pesquisadores de vários Estados do Brasil que não sabiam de minha amizade pretérita com ele, comentavam sobre um novo aluno, um “rapaz muito católico”, que se expressava “como um padre”, mas que possuía um “conhecimento incrível, uma cultura clássica” e, acima de tudo, “irradiava uma luz e uma paz” contagiantes. Pouco nos encontramos nesse período, pois cursávamos disciplinas distintas, mas era notável sua capacidade de impactar, positivamente, todos a sua volta. No ano seguinte, em mais uma feliz coincidência, lecionávamos na mesma instituição, a Faculdade IES, em São José. Lamentavelmente foi lá, no segundo semestre de 2004, que seu grave problema de saúde manifestou-se. Na instituição, recebíamos informações desconexas sobre uma crise repentina, seguida de internação em caráter de urgência. Decidi buscar mais informações no próprio hospital. Estava chocado com a brutalidade da notícia e a gravidade do problema. Dirigi, muito tenso, pelas ruas escuras ao redor do Hospital Celso Ramos, e caminhei nervoso pelos corredores até a porta de seu quarto. Alguns objetos religiosos e cartas de apoio deixados do lado de fora tornavam o ambiente um pouco mais receptivo, mas não diminuíam o impacto causado pela placa a indicar a proibição de visitas. Fiquei ali alguns minutos, até que Dona Leatrice surgiu e me permitiu entrar. Preparei-me para o pior, afinal, ali estaria um jovem de 25 anos acometido por um linfoma grave. O choque de fato veio, mas de forma diferente. Ao me ver, Marcelo abriu um sorriso absurdo naquelas circunstâncias, genuinamente feliz. “Samuca, meu caro, que alegria vê-lo”. Descreveu-me as dores que sofria há alguns dias e a crise que o atingiu em sala de aula. Já tinha consigo alguns livros e iniciara o estudo sobre sua doença. De nada se queixou ou reclamou, apenas lamentou ter que se afastar do trabalho por preocupar-se com seus alunos. Dirigiu palavras de afeto aos enfermeiros que entraram no quarto. Em pouco tempo, deixou seu grave problema de lado e já falava de livros, do Brasil e de Cristo. Estava tocado pelo carinho dos amigos que o visitavam todos os dias e pela força que o Senhor lhe dava através da oração. Ao se despedir, sempre sorrindo, entregou-me um pequeno terço. Como depois bem sintetizou nosso amigo Eduardo Sens dos Santos, íamos visitar Marcelo para apoiá-lo, porém era ele quem nos apoiava. Penso que dona Leatrice e Seu Júlio me perdoarão se eu afirmar que foi na enfermidade, no modo como ele a enfrentou, que a vida de Marcelo, já especialíssima em vários sentidos, adquiriu para muitos um caráter excepcional, transcendente. Em 2005, abalado pelo tratamento, magro, sem cabelos e movendo-se com o auxílio de uma bengala, inscreveu-se no concurso para Promotor de Justiça. As imagens de Marcelo debilitado, porém sorridente e determinado, subindo com o apoio de Seu Júlio as escadas do campus da UNISUL ou chegando para estudar na biblioteca da Procuradoria-Geral de Justiça jamais sairão de nossa memória, minha e de centenas de participantes daquele concurso e funcionários do Ministério Público. A paz e a serenidade com ele enfrentava estes desafios traduziam mais do que coragem e força de vontade: eram a Fé e a Esperança que o moviam, e que nunca permitiram que ele fraquejasse durante os exames. Nestes meses, nos quais nos tornamos mais próximos em razão da preparação para o concurso, eu percebia seu entusiasmo sempre que ele mencionava suas atividades na “Obra”, que ele não abandonara mesmo no limiar das provas. Em 2006, encerrado o concurso, Marcelo convidou-me para uma palestra organizada pelo Opus Dei em Florianópolis, na Igreja da Imaculada Conceição. Aceitei de pronto, em parte por curiosidade. Meu amigo estava agora envolvido com os vilões do Código Da Vinci, pensei. Enfim no recolhimento, que espantosa surpresa: a acolhida calorosa e uma reflexão ao mesmo tempo simples e profunda, rica mas acessível, sobre a mensagem do Evangelho e seu impacto em nossa vida cotidiana, como jovens, profissionais, cidadãos. Era compreensível o entusiasmo de meu amigo: a mensagem da Obra, marcada pela valorização do trabalho como espaço privilegiado para o encontro com Deus, encontrava ressonância em sua própria vida, na Fé que o movia, em sua dedicação à Igreja e amor ao Direito. Com seu incentivo, participei de outros recolhimentos da Obra naquele período, mas afastei-me quando passei a morar no interior do Estado. Sou extremamente grato ao amigo André Ghiggi, a quem fui apresentado por Marcelo, por me possibilitar retornar aos recolhimentos depois que voltei a morar em Florianópolis. Lá, tenho contato com jovens que não conheceram Marcelo em vida, mas que conhecem sua história e se inspiram em seu exemplo. É impressionante como seu trabalho de evangelização, sempre muito intenso, ampliou-se em alcance e significado após sua morte. Conversei apenas uma vez com Marcelo após assumirmos como Promotores. Estava aparentemente bem de saúde, entusiasmado com a nova profissão, mas preocupado com a recuperação dos acusados nos processos criminais nos quais atuava. Lembro-me de ter usado a expressão “ira santa” para designar o sentimento que possuía em relação à injustiça e à violência, sem descurar da recuperação pessoal do criminoso. Soube, depois de sua morte, que Marcelo chegou a procurar criminosos condenados em processo nos quais atuara, instando-os a mudar de vidar. Pouco depois, recebemos o triste e-mail. Todo quadro do Ministério Público estava mobilizado em busca de possíveis doadores de medula, pois agravara-se a situação do jovem colega. Multiplicavam-se as mensagens de solidariedade entre servidores e Promotores de Justiça que o haviam conhecido por poucas semanas, mas já tocados por sua personalidade. Acompanhei à distância as notícias quanto ao agravamento de sua situação, até a irreversibilidade. A mensagem dolorosa veio por antigos amigos de faculdade, já tarde da noite na Quinta-Feira Santa de 2008. Em seu velório, a multiplicidade de pessoas e grupos, a ele ligados por diferentes vínculos, bem ilustrava a riqueza do trabalho incansável desenvolvido por Marcelo em seu breve período de vida. Hoje, 10 anos depois, em certo sentido, o espanto permanece quando surgem notícias de graças recebidas por sua intervenção. Eu próprio já pedi, em oração, sua intercessão e apoio. Não há nada a surpreender, no entanto. Penso que Marcelo ensinou-nos que o caminho da santidade está muito mais próximo do que imaginamos, mesmo no mundo moderno, especialmente a nós, que cremos no Deus vivo presente em cada Sacrário. Viveu muito pouco, mas deixou marcas profundas em todos que o conheceram, e hoje toca milhares de pessoas que se aproximam de sua extraordinária história de vida. “Temos medo porque não cremos o suficiente”, dizia o Padre Flávio Sampaio, em um recolhimento a que assisti ao lado de Marcelo. “Se crêssemos verdadeiramente, nada temeríamos.” Diante da enfermidade, dor e morte, pela Fé no Senhor, nosso amigo Marcelo Câmara nada temeu e hoje sua história nos enche de coragem e esperança. Que espantoso privilégio tê-lo conhecido.
Não conheci o Marcelo Câmara, entretanto tenho amigos que o conheceram, que eram amigos dele. Tudo o que eu soube a respeito da vida dele, foram esses amigos que me contaram. Na época em que conheci a sua história, eu trabalhava no Ministério Público de Santa Catarina, mesma instituição em que Marcelo se tornou Promotor de Justiça. Soube que ele lutava contra uma doença, que conseguiu aprovação no concurso de Promotor de Justiça e que, depois de nomeado, teria feito um júri em que, após obter a condenação do réu, teria aconselhado o condenado a mudar de vida, a pensar em Deus, a refletir sobre seus atos, transmitindo uma mensagem de fé a alguém que acabara de sofrer uma condenação. Isso é algo bastante incomum no meio jurídico, pois, geralmente, os Promotores de Justiça quando conseguem condenar alguém no Tribunal do Júri, sentem-se vitoriosos como se tivessem cumprido bem a sua missão, mas desejam que o condenado fique por muitos anos preso por haver praticado um crime doloso contra a vida. Marcelo foi além e santificou o trabalho de Promotor de Justiça ao aconselhar um condenado a mudar e vida, a resgatar a esperança e se aproximar de Deus.
Certamente ele tinha uma espiritualidade elevada, que não é comum, eu não conheci ninguém como ele. Ele foi o único que eu conheci. E no final da vida, a gente sabe que ele já sabia que não tinha mais possibilidade de tratamento, tudo o que se fazia era paliativo, eu tenho certeza de que ele já sabia disso, eu acho que ele preferiu não transmitir aquele sentimento de final de vida, de desespero para ninguém, eu acho que ele manteve sempre a dor dele com ele mesmo, no sentido de que ele ficava calado, ele não tinha aquele desespero, aquele apelo, aquele “pelo amor de Deus me salva”, ele aceitou, da maneira dele, que estava no m da vida. A sensação que eu tinha quando entrava no quarto dele é que ele estava sempre meditando, de olhos fechados, calmo, sereno, tranquilo, sem deixar que o meio, que as pessoas do meio contaminassem seus pensamentos, deixassem ele depressivo, choroso, apelativo. Ele nunca estava assim, sempre muito sereno, muito tranquilo, embora eu acredito que no fundo ele tivesse sofrendo. Mas isso me chama atenção, não é o comum. As pessoas no final da vida são muito apelativas, têm muita tristeza, muita revolta, muito desespero. Eu não vi desespero no Marcelo. Eu vi ele meditando, tentando entender o que estava acontecendo e acho que assim foi, até o fim.
Sim, tantas vezes Jesus Misericordioso permite que eu, em toda a minha pequenez, com todos os meus defeitos e pecados, possa Lhe dar um colinho – e ainda mais – entregá-lo a outros irmãos. Maravilha de Deus! Maravilha do Amor! Pura Graça! Já levei muitas vezes Jesus Eucarístico a muitas pessoas nos hospitais e em suas casas. Levei, também, algumas vezes para o Marcelinho enquanto hospitalizado. A imensa diferença de entregar a Eucaristia a ele e às outras pessoas era uma única: eu tinha e tenho a absoluta certeza, que quando eu entrava no seu quarto, não era a mim que ele enxergava. Eles já eram tão íntimos que ele sabia que mais uma vez o Amor estava indo ao seu encontro. Que mais uma vez Jesus o visitava. Nesses momentos a visita nunca foi minha. E antes e depois da comunhão, sempre, o quarto estava cheio de um silencio de Amor!
A paróquia do Sagrado Coração de Jesus em ingleses, norte da Ilha, Florianópolis, foi criada em 1998, no último domingo do mês de junho. Fui nomeado como primeiro pároco. Eu era um jovem recém ordenado. Foram muitos os desafios e as alegrias deste tempo em que lá vivi meu ministério sacerdotal. Acolher, acompanhar, conhecer e conviver com o Marcelo foi uma das muitas alegrias, uma edificante alegria. Na temporada de verão 98/99, para bem atender o fluxo de fiéis que vinha para o Norte da Ilha, como turistas em veraneio, fui inspirado a criar o projeto “Verão Mais Feliz com Jesus”. Como nossa igreja matriz era muito pequena, quis a providência divina que um benfeitor doasse uma tenda bem grande com capacidade de até 1000 pessoas para que realizássemos as atividades de evangelização e celebrações litúrgicas. Esta tenda foi montada num excelente local no centro dos Ingleses, junto as dunas. Foi um grande mover espiritual de evangelização nesta “tenda”. Além dos turistas, muitos moradores dos ingleses passaram a participar, tanto que mesmo com o fim da temporada de verão, a “tenda” não foi desmontada e continuava sempre lotada para todas as celebrações. Foi nesta “tenda” que chegou um dia no ano de 1999 o jovem Marcelo. Sua família morava ali nas proximidades. O jovem começou a participar com assiduidade das missas na “tenda”. Primeiramente aos domingos e logo também das terças feiras e quintas feiras. Depois de um certo tempo, fui percebendo sua perseverança, e o modo com que ele tomava parte das celebrações, ele vibrava, orava com muita piedade e no momento da pregação seus olhos fixos e brilhantes chamavam atenção indicando um atento e salutar ouvir. Este ouvir fez com que Marcelo se aproximasse de mim para partilhar, esclarecer, pedir ajuda e dispor-se a ajudar. Marcelo vencendo as barreiras de uma natural timidez vinha ao meu encontro ao final das celebrações com reverente simpatia para agradecer pela celebração e sempre comentar com alegria a Palavra que lhe havia tocado profundamente. Assim nos tornamos muito próximos. Ele partilhava seus ideais e sua “fome pela Palavra”, o que lhe fazia querer estar sempre mais no convívio eclesial. Participava além das celebrações litúrgicas também do grupo de oração e louvor carismático. Percebi que ele também buscava crescer na “graça e no conhecimento do Senhor” através de boa leitura espiritual e doutrinal, e assim o convidei para ser catequista em nossa paróquia. Ele muito se alegrou e muito se preparou para acolher sua primeira turma de crismandos. Os crismandos ficavam encantados com seu catequista, um jovem da PALAVRA! Outra nota característica de Marcelo era o amor à Eucaristia celebrada, comungada e adorada. Na quintas feiras de adoração era sempre comum vê-lo adorando o Santíssimo, mesmo que ele tivesse muitos compromissos com sua faculdade, seus estudos. Notando nele esse “ser eucarístico” o convidei para ser Ministro Extraordinário da Sagrada Comunhão. Ele foi nosso mais jovem ministro. Sua gentileza e sabedoria alentava e edificava a todo nosso corpo de ministros paroquial a quem ele muito ajudou ministrando aulas sobre o Catecismo da Igreja em nossa escola paroquial de Lideranças. Participar das aulas ministradas por Marcelo era muito edificante. Ministrava com profundidade, sabedoria e simplicidade. Uma mente brilhante e humilde, um coração vigoroso e terno. De fato, o engajamento evangelizador-pastoral de Marcelo em sua paróquia foi o “chão fecundante” de sua vida de união com Deus e serviço aos irmãos. Nos cinco anos que estive em Ingleses ele se destacou como um fiel paroquiano que descobriu “embaixo de uma tenda” a felicidade, a bem aventurança em Jesus. Um jovem impactado pela Palavra de Deus, apaixonado pela Eucaristia, comprometido com a Igreja e de olhos abertos às necessidades da sociedade em seu clamor pela “justiça e o direito”.
Conheci o querido Marcelo Câmara quando cheguei para ser pároco de Ingleses e antes também, quando era seminarista ainda, sempre o vi como um catequista muito zeloso, muito dedicado, cultivava uma alegria muito grande, uma capacidade imensa de atenção, de simpatia, de caridade para com as outras pessoas, mostrou-se sempre muito solícito para com a Paróquia e suas necessidades, ajudou muito na evangelização de vários jovens através da sua palavra, do espírito de oração, do seu testemunho. Sempre me impressionou também a forma como se confessava, com muita confiança na misericórdia de Deus, procurando examinar realmente a sua vida, e sempre manifestando muita alegria de estar no caminho que ele sabia, era o caminho do seguimento de Jesus que leva à santidade.

“A primeira vez que falei com o Marcelo foi no decorrer do concurso do Ministério Público em 2006, no qual ele foi aprovado em quinto lugar. Eu não passei da terceira fase. Lembro-me como se fosse hoje da forma humilde com que ele divergiu do meu posicionamento ao sairmos da prova na qual não obtive êxito. Ele estava ao lado de um amigo comum, com a sua bengala, quando perguntei a ele o que tinha realizado no exame. Não o conhecia pessoalmente, mas tinha ouvido a história de como ele foi realizar a primeira fase muito combalido pela quimioterapia, tendo de ser carregado para chegar à sala onde foi executada a prova. Alguns meses depois, talvez mais de um ano, fui convidado a participar de uma atividade do Opus Dei na igreja da Prainha, chama-se recolhimento mensal, onde um Sacerdote faz uma pregação sobre um tema da doutrina Católica, a fim de os presentes poderem fazer oração. Quando entrei no templo, pela lateral, deparei-me com o Marcelo na primeira fila, para variar sorrindo, com aquela alegria singular. No final, conversamos um pouco e marcamos um almoço. Dai em diante, por aproximadamente seis meses, almocei com o Marcelo praticamente todas as semanas. A sua grande espiritualidade era evidente. Estava sempre alegre, falava com uma mansidão impressionante, mesmo quando conversávamos sobre o câncer contra o qual ele estava lutando. Neste tempo os sintomas tinham sumido, autorizando ele tomar posse como Promotor de Justiça. Nunca ouvi ele falar mal de ninguém. Possuía uma perspectiva otimista de tudo, transmitindo uma paz comovente. Cultíssimo, inteligente, falava um português irrepreensível, o qual eu apreciava muito ouvir. Ligar para ele era um verdadeiro deleite, atendia com um entusiasmo que fazia os amigos se sentirem verdadeiras celebridades: “Nossa que alegria falar com você! Tudo bem! Sensacional você me ligar! Ganhei o dia em receber a tua ligação”, esse era o padrão… A gentileza dele praticamente irradiava pelos buraquinhos do telefone. Uma tarde eu caminhava com o Marcelo pela Bocaiuva, perto da casa da sua avó, e dois rapazes mais jovens, seus amigos, aproximaram-se para conversar e não queriam mais deixar-nos, ficavam olhando para o Marcelo com uma admiração surpreendente enquanto ele falava. Ele ficou constrangido com a situação e, de um modo muito polido, fez com que entendessem que precisávamos conversar de modo mais reservado e os dois jovens partiram felizes. Foi uma situação muito engraçada. Em outras ocasiões voltei a observar como as pessoas gostavam de ficar perto dele. Contaram-me que no fórum da Capital as copeiras teriam apelidado ele de: “O iluminado”, tamanha era delicadeza com que tratava esses profissionais mais humildes. Nos nossos almoços, comia muito pouco, geralmente um punhado de arroz, um dedal de feijão, duas rodelas de tomate e um ínfimo pedaço de carne, lembro claramente; mesmo no período que ele estava bem de saúde, confiante no sucesso do tratamento, seus pratos eram sempre assim, modestos, pareciam feitos para crianças, os quais contrastavam em muito com as minhas refeições substanciosas… Sempre procurava saber como eu estava caminhando na fé, dando-me dicas e conselhos oportunos para avançar. Havia pouco tempo que eu tinha me decidido levar o cristianismo mais a sério e a ajuda dele foi determinante no meu processo de conversão e discernimento vocacional. Certa vez, encontrei com ele na porta da capela do Colégio Catarinense. Recordo de não estar bem espiritualmente naquele dia, parece que ele adivinhou, pois colocou a mão no meu ombro, olhou-me seriamente dizendo: “Vida interior! Vida interior! Depois dirigiu-se sem dizer mais nada até o banco para rezar. Este fato e o olhar dele me marcaram muito. Gosto de dizer que o primeiro livro espiritual católico que eu li, ganhei dele: “O Sermão da Montanha” (George Chevrot). Guardo a obra com muito carinho, sobretudo por conta da dedicatória. Na fase aguda da doença, antes de ser hospitalizado definitivamente, encontrei ele algumas vezes nas missas. Ainda que debilitado pelo tratamento – perdera os cabelos, seu rosto estava bastante inchado, caminhava lentamente – a alegria, a forma serena e educada de falar, continuavam presentes no seu modo especial de ser. Na fase terminal, acalmava os seus familiares e amigos dizendo: “Não se preocupem, para aonde eu vou é bem melhor, estarei com Cristo, com Nossa Senhora e os santos”. Soube mais tarde que ele teria dito inclusive que morreria na quinta-feira santa para ser sepultado na sexta, igual a Jesus…“Ele não era desse mundo” disse-me um amigo uma vez. Concordo plenamente, o próprio grande Mestre nos alertou sobre isso – “…não sois propriedade do mundo; mas Eu vos escolhi e vos libertei do mundo” (João 15:19); o Marcelo, nos últimos anos de vida, evidenciou a sua verdadeira cidadania: de peregrino em direção à pátria eterna, igual a todos nós, embora no mais das vezes, por causa de ninharias que cedo ou tarde se tornarão pó, acabamos por esquecer dessa condição. Rogai por nós, amigo!”

Durante a faculdade, como seu contemporâneo, conhecia Marcelo apenas de vista. Alguns anos mais tarde, tornado juiz substituto e respondendo pela Vara Criminal de São José, então a mais trabalhosa do Estado, fiquei estarrecido com a designação – pelo Ministério Público Estadual – do Marcelo, que eu sabia padecer de doença grave, para atuar em Promotoria de Justiça exclusivamente criminal junto àquele juízo. Atuamos juntos por algumas semanas, intensas e desgastantes, física e emocionalmente, como eram todas naquela época por lá. Em seguida, aquela Vara foi sendo desdobrada e, pouco tempo depois, vimos 4 (quatro) Varas dividindo um trabalho que naquela época era concentrado em 1 (uma). Marcelo sempre se mostrou dedicado e sereno. Jamais demonstrou qualquer sinal de medo ou perturbação pela lida criminal ou por qualquer caso específico, mesmo os mais deprimentes. Portava-se ao mesmo tempo com simplicidade e decoro. Lembro-me com exatidão de sua voz mansa, porém firme. Sempre assoberbados de trabalho, nossas conversas poucas vezes resvalaram para assuntos transcendentes, mas nesses casos sempre com grande proveito para mim. Seu ofício na Vara Criminal de São José foi para mim dos mais gratificantes e seu falecimento, uma perda que se mostrou também pessoal, como depois escrevi ao pai dele. Márcio Schiefler Fontes Juiz de Direito

Estou muito feliz e extremamente emocionado em poder relembrar os marcantes momentos que tive como o eterno amigo Marcelo.
Tive a oportunidade de conhecê-lo no concurso de ingresso [do Ministério Público], mas especialmente na primeira prova (prova preambular), a qual é muito longa, tendo duração por todo o dia (algo em torno de 8 a 10 horas, dependendo das regras de cada concurso). Na qualidade de Secretário da Comissão de Concurso, conheci o Marcelo nos corredores da Universidade. Ele apresentava muita dificuldade de locomoção e aparência de um corpo debilitado por alguma doença. No entanto, o seu carisma, o seu carinho e o seu sorriso, fruto da sua elevação espiritual, eram contagiantes. No dia seguinte ao concurso, todos comentavam a respeito do candidato. As observações eram de admiração. Todos, sem exceção, destacavam que o jovem, apesar das dificuldades, não desistiu e tampouco demonstrou cansaço, mesmo tendo participado de um processo estressante, quase uma maratona. Eu, sinceramente, fiquei surpreendido pelo ocorrido. Jamais havia visto uma unanimidade igual àquela.
O concurso seguiu seus trâmites. Marcelo passou a dar demonstração da sua capacidade jurídica, do seu desejo de ser Promotor de Justiça e, principalmente, da sua capacidade de lidar com as adversidades. Naquele momento, Marcelo apresentava melhoras no seu quadro clínico, mas ainda lutava contra a doença que insistia em invadir o seu corpo físico. A impressão sobre o diferencial de Marcelo cada vez fica mais explícito. Naquela fase do concurso não se discutia ou se comentava sobre a doença ou sobre as limitações delas decorrentes. Isso passou ao segundo plano. Todos passaram a contemplar as qualidades da jovem candidato.
Recordo-me que a divulgação do resultado do Concurso foi emocionante. No Auditório Luiz Carlos Schmidt de Carvalho (Promotor de Justiça brilhante, meu amigo pessoal e vítima de acidente aéreo), na Procuradoria-Geral de Justiça, tive a oportunidade de apresentar, em ordem crescente de classificação, o nome dos aprovado no Concurso de Ingresso na Carreira do Ministério Público. Marcelo estava dentre os aprovados. A emoção foi contagiante.
Restava uma nova fase, a nomeação e posse. Certo dia, Marcelo adentrou no meu gabinete e, com um sorriso imenso, sem perder, no entanto, a serenidade, me apresentou a notícia de que ele estava “curado” e que seu médico havia diagnosticado que ele estava apto a tomar posse. Essa foi uma das melhores notícias que eu já recebi. Imediatamente, fui ao gabinete do então Procurador-Geral de Justiça, Doutor Pedro Sérgio Steil, levar a boa nova.
Marcelo tomou posse e, após alguns dias, novamente foi hospitalizado. Depois de um grande período de internação, recebemos, no Ministério Público, a notícia do seu falecimento. A tristeza foi geral. Todos lamentavam, no entanto, durante o velório, era incrível ver as pessoas falando sobre as qualidades de Marcelo. Não se falava sobre outros assuntos.
A sua passagem no Ministério Público foi curta, no entanto os seus exemplos ficarão para sempre. Acredito que no Ministério Público ele teve oportunidade de colocar em prática, de forma efetiva, a sua devoção às causas sociais.
Levarei para sempre a imagem de um Amigo acolhedor, companheiro e capaz de enfrentar dificuldades sem perder a serenidade.

Sandro José Neis
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de Santa Catarina

O Marcelo foi um anjo que passou por nossas vidas. Eu era coordenadora da catequese e da Crisma do Santuário Sagrado coração de Jesus, na praia dos Ingleses em Florianópolis. Um jovem formado em direito que pertencia o Emaús, e era catequista da Crisma, os jovens amava os seus ensinamentos, ele ajudou na época muitos jovens a se afastar das drogas, era ministro da eucaristia da nossa paróquia, onde as senhoras queriam todas ser avôs dele. Tenho certeza absoluta que o Marcelo foi um anjo que Deus deixou conviver conosco, e que agora lá do céu ele continua ajudado quem precisa
“Logo que o Marcelo iniciou sua apresentação de um trabalho de História do Direito, ainda na primeira fase do curso de Direito da UFSC, surpreendi-me com sua extraordinária oratória, desenvoltura e cultura geral. Ao longo do curso, percebi que aquelas qualidades, todavia, eram apenas algumas das qualidades do Marcelo, e que nem de longe eram as mais importantes. Marcelo irradiava bondade. Tinha sempre um sorriso amigo para receber qualquer um que dele se aproximasse. Discutia ideias e sempre desincentivava conversas sobre terceiros e julgamentos de atos que não diziam respeito aos interlocutores. Tive a alegria de ter participado de encontro do Emaús, da Igreja Católica, após indicação do Marcelo. E emociono-me sempre que lembro da visita que, junto com outros membros de grupos do Emaús, Marcelo fez à minha casa, quando, ao som do violão, entoaram: “Julia, abre a porta, Julia…”. E a porta foi aberta. E dentro de mim, após abertas as portas, carrego todas as lembranças e, acima de tudo, o exemplo de alegria, compaixão, fé e bondade do Marcelo. Visitei o Marcelo quando de sua internação no Hospital Celso Ramos, ocasião em que ele de nada se queixou, tendo, ao contrário, manifestado desejo de saber como eu estava. Se por um lado meu primeiro sentimento foi de que o mundo ficou pior com a partida do caríssimo Marcelo, quero crer que, por outro, seu exemplo de vida há de multiplicar bondade, fé e esperança dentre nós.” Julia Vergara
Posso acrescentar que o Dr. Marcelo realmente era uma pessoa diferente e muito especial. Na missa de sétimo dia quando o padre falou que ele era um santo, todos os presentes se olharam concordando com o que tinha sido dito, pois essa era a impressão que todos tinham dele. Tive mais contato com ele já no período em que estava internado no hospital, pois acompanhávamos os membros do Ministério Público que estavam com problemas de saúde e cada vez que íamos lá para visitá-lo e confortá-lo, nós é que acabávamos saindo confortados pela sua santidade. Ele era muito educado e recebia a todos com muito carinho. O sentimento era de paz e conforto apesar da sua grave situação de saúde. No seu sepultamento era um silêncio absoluto. Ninguém conversava ou fazia qualquer tipo de brincadeira, ou coisas do gênero, muito tradicionais na nossa cultura. Todos estavam unidos e envolvidos com o Marcelo num sentimento de muita paz e união. Até hoje ele é uma pessoa que não sai da nossas lembranças, apesar de termos o conhecido e convivido por pouco tempo.” Coronel Rogério Martins
Habemus Marcelus No dia em que ouço pela televisão um habemus papam aproveito e tiro um tempinho para escrever alguma coisa sobre o Marcelo Henrique Câmara. É difícil e é fácil ao mesmo tempo. Vou contar duas histórias que retratam este grande homem que passou pela Terra e deixou saudades. Conheci o Marcelo na faculdade de Direito da Ufsc. Logo nos primeiros dias. Sentei próximo dele. Havíamos todos saído de excelentes cursos preparatórios para vestibulares, com professores com aquela didática moderna e peculiar dos cursinhos. Ingressar na Ufsc era sonho e, quando aconteceu, foi, pelo menos para mim, um choque. Um prédio mal conservado com professores sem muita didática. Faltavam professores em disciplinas importantíssimas, como Direito Penal e Processo Civil e cada aluno acabava se virando como podia. A reclamação era geral. Os alunos mais tímidos sempre desviavam o olhar quando o professor queria escolher alguém para fazer uma pergunta, para solicitar um exemplo. O Marcelo não. O Marcelo talvez tenha sido o melhor orador que conheci. Nas vezes em que algum professor pedia sua opinião, todos já sabiam, vinha uma aula! Citava e falava latim com tranquilidade, e no caderno sempre havia alguma anotação também em grego. Não, não estou brincando, era impressionante a vastidão de conhecimentos do Marcelo. E quando o assunto era religião, então, nem se fala. O Marcelo era incrivelmente religioso. Na verdade, estudava teologia como hobby, como quem joga futebol três vezes por semana. Acho até que ele estudava muito mais que três vezes por semana. Certa vez, eu e outros colegas elogiamos a beleza de uma aluna de outro período daquele jeito de quem ainda não aprendeu a lidar com os hormônios. O Marcelo concordou com o elogio, dizendo “sim, uma bela filha de Deus”. Numa dessas ocasiões, o professor deu uma espetada na Igreja Católica criticando o dogma da infalibilidade papal. Ah, pra quê! O Marcelo levantou educadamente a mão e consignou, como um advogado no júri, o seu protesto. Por pouco não pediu para registrar em ata. Educadamente, como sempre, pediu licença e explanou, longa, enfática e profundamente, no que consistia o tal dogma, que eu nunca tinha ouvido falar, e que acabei me convencendo de que era uma das coisas mais óbvias e inteligentes que alguma igreja jamais tenha inventado. O poder de convencimento do Marcelo era realmente fantástico. Mas o dia em que esse domínio da oratória mais chamou a atenção foi numa das primeiras aulas de Direito Processual Civil. Uma professora substituta, recém-formada, sem nenhuma experiência de cátedra, chegou na sala de aula. Fez a chamada e logo em seguida percebi que ela tentava ganhar um pouco de tempo, talvez para quebrar a própria insegurança, para aplacar o nervosismo. Logo pensei: vai começar perguntando para alguém a clássica “o que é direito?”. Qualquer um que tenha estado nos bancos de uma faculdade de direito já ouviu essa pergunta por pelo menos uma dezena de vezes. Ali, na quinta fase, já tínhamos ouvido pelo menos umas cinco vezes. Sempre, claro, com uma resposta absolutamente diferente da outra. Pois não é que a tal professora substituta, que mal se equilibrava num salto alto impróprio para a roupa que usava – um vestidinho curto e um pouco justo demais para as suas dimensões – lançou diretamente ao Marcelo a fatídica pergunta. Justo a ele, o maior orador da turma, o único que estudava latim, grego, teologia e, nas horas vagas (que nunca eram muitas), também estudava direito muito além do que qualquer professor podia esperar. “Ah, coitada”, pensei na hora. O Marcelo, agradecendo à pergunta, e sempre muito polido e educado, iniciou o que podemos chamar de Breve Tratado da Teoria do Direito desde a Roma Antiga até os Dias Atuais. Iniciou citando Sócrates, Platão, Aristóteles e companhia limitada. Falou de Santo Agostinho (que ele lia direto em latim), Justiniano, passando pelo Direito Canônico. Falou na Revolução Francesa, Montesquieu, Rousseau, e mais alguns iluministas obscuros para mim (com o perdão do trocadilho); falou da diferença entre lei, direito e moral, passou pela Teoria Pura do Direito, mencionando Kelsen como quem fala de alguém da própria família; não esqueceu do Miguel Reale e da Teoria Tridimensional e chegando até os autores da atualidade, Alexy, Dworkin e mais uns três de nomes complicados e que, pela cara, a professora nem conhecia. Uns dois alunos, que não estavam acostumados como nós ao Marcelo, quase caíram da cadeira. Eu queria ter escutado os pensamentos da professora. Provavelmente pensou em pular da janela, mas o vestidinho impediria o ato sem gerar um mínimo de deselegância; talvez tenha pensado em voltar à Secretaria do Curso e pedir demissão (“eles não precisam de professor, já sabem de tudo”, teria dito ela às lágrimas). Talvez tenha engolido em seco e se perguntado “e agora?”. Ou talvez, como todos nós, ela tenha simplesmente se encantado com o Marcelo, com seu jeito fácil de falar de temas difíceis, com seu sorriso puro e afável, com o exemplo de vida simples, honesta e dedicada ao trabalho que teve, inclusive quando foi promotor de justiça. O Marcelo cativava e cativou. Manterá todos nós cativos da sua amizade, para sempre, onde quer que esteja. A descomunal inteligência, a capacidade oratória, a enorme cultura talvez sejam predicados todos muito pequenos para descrever quem ele era. Marcelo era, sem dúvida, um evento cósmico desses que o Universo só consegue repetir uma vez a cada mil anos e que vai ficar em nossas memórias para sempre.
Dia 20 fará 6 anos!! Eu fui aluna do Marcelo, na IES em São José. Tive o prazer de conhecer essa pessoa iluminada e extraordinária, um cara de extrema gentileza, e caráter induvidável. Que Deus o tenha e sua família esteja em conforto, e fé sempre. Saudades Prof.
Tive oportunidade de conhecer o caríssimo amigo Marcelo Henrique Câmara em março de 1997, quando do início de nossa graduação em Direito, na UFSC, na estimada turma 97.1. Desde o início das aulas, Marcelo já se destacava pela sua eloqüência e capacidade intelectual, tendo conhecimento de assuntos ainda acima da média de boa parte da turma, formada em sua maioridade por jovens ainda adolescentes – como ele – todos recém saídos do ensino médio. Lembro que já na primeira semana de aula, quando tínhamos horários livres na grade por falta de professores, Marcelo escapou do trote pois ao invés de ficar aproveitando o horário livre, foi assistir a palestra de três professores italianos que estavam ministrando um colóquio para turmas mais avançadas. No andar do concurso, passei a ficar mais próximo de Marcelo, sendo que algumas vezes por semana ele almoçava na casa da madrinha e da avó, próximo de onde residia, motivo pelo qual gentilmente me oferecia carona, de modo que não precisasse retornar para casa de ônibus. Seu carro, na época um gol branco, parecia uma biblioteca móvel, tamanha a quantidade de livros que ele retirava da Biblioteca Universitária para estudo. Neste período, Marcelo já participava assiduamente no grupo de Emaús, sendo que já na época possuía um vasto conhecimento da dogmática e da doutrina católica. Como sempre gostei de estudar religiões, voltavamos conversando sobre o assunto e nessas nossas conversas, Marcelo deixava transparecer uma característica marcante sua, qual seja, o respeito pelo próximo. Digo isso, pois sou espírita (kardecista) e em nossas conversas nenhum de nós procurava intervir na fé do outro. Pelo contrário, Marcelo me apresentava aspectos de seus estudos e me questionava aspectos da doutrina espírita para conhecer melhor e entender um pouco mais de nossa fé, sempre com respeito e buscando encontrar aspectos comuns entre o espiritismo e o catolicismo, numa demonstração de humildade e consideração com o próximo. Durante os tempos de graduação, Marcelo sempre defendeu sua fé de forma aberta, não se furtando em nenhum momento em questionar os professores quando faziam colocações contrárias a Igreja. Lembro-me particularmente de um episódio na 9ª fase, na qual a discussão chegou a ficar acalorada, mas em altíssimo nível, sendo que no encontro seguinte tanto o professor como Marcelo assumiram humildemente a postura de se desculparem, sendo que dali em diante o referido professor passou a ser um admirador confesso do notável colega. Assim seguimos até nossa formatura, quando foi nosso orador, desempenhando com maestria o múnus recebido. Após a formatura, cada um seguiu seus caminhos, tendo ele se dedicado inicialmente à vida acadêmica e a docência, partindo para o programa de mestrado, enquanto segui para o caminho da preparação para os concursos para carreira pública. No entanto, nos encontrávamos com alguma freqüência, nos arredores do largo São Sebastião, onde ele deixava o carro para visitar a avó e a madrinha, oportunidade em que ele me atualizava sobre o andamento das pesquisas acadêmicas para conclusão do trabalho de pós-graduação. Foi então que 2004, enquanto estava prestando o concurso para ingresso no Ministério Público, tomamos conhecimento do linfoma que atingiu nosso jovem amigo. Assim que foram liberadas as visitas, fui visitá-lo no Hospital Governador Celso Ramos, em período que coincidiu com a fase final do concurso referido. Ao chegar no nosocômio deparei-me com um amigo que apesar de gravemente doente, possuía uma força de superação e vontade de viver absurda. Ao invés de levar conforto ao amigo, cada uma das visitas que fiz no período, sozinho ou acompanhado, serviram-me de força e motivação para obter aprovação nas provas, devido aos incentivos recebidos. Ao contrário de receber apoio, Marcelo mesmo debilitado, dava força para seus pais e amigos, de modo a aliviar o pesar que todos sentiam pela situação, sendo que procurava sempre pensar nos seus entes queridos antes de si, agindo sempre com resignação, mas sem deixar de lutar. Lembro-me dele me apresentado médicos, enfermeiros, a “amiga químio” e a “amiga rádio”, sendo eu todos que conviveram com ele durante todo o período em que lutou contra as limitações de saúde ficavam impressionados, de modo que no Hemosc, por exemplo, onde se concentrou a campanha de doação de medula óssea para fins de transplante, a menção ao nome do Marcelo era motivo para comentários festivos e relatos de forte torcida por sua recuperação. Mesmo com o tratamento em andamento, Marcelo encontrou força para prestar o difícil concurso do Ministério Público, vindo a obter êxito com grande destaque. Durante o concurso, combinamos de jantar na pizzaria San Francesco, junto com o colega e amigo Samuel Naspolini, que também prestava aquele concurso, oportunidade em que me relatou sua preocupação em relação ao entendimento que a comissão de concurso teria em face de seu tratamento. Lembro que o aconselhei a procurar o Dr. Sandro Neis, então Secretário-Geral do Ministério Público e Secretário da Comissão de Concurso, a fim de lhe relatar abertamente acerca da doença e tratamento, sendo a sugestão aceita. Assim, Marcelo, com sua humildade e serenidade de sempre, procurou o citado Promotor de Justiça e relatou de forma franca sua situação, de modo que, por sua sinceridade e pelo conhecimento demonstrado nas etapas do certame, passou a ser admirado e respeitado pelos membros da comissão examinadora. Cito, como exemplo, que tomei conhecimento que na prova oral os examinadores chegaram a lhe questionar sobre direito canônico, matéria que dominava, de modo a demonstrar a todos os presentes – já a etapa é pública – a qualidade do candidato que estava ingressando nos quadros da instituição. Infelizmente, pouco tempo após o início de seu exercício profissional, Marcelo foi acometido de um inesperado agravamento de seu quadro de saúde, o qual resultou no seu óbito prematuro. Apesar do pouco tempo na instituição, sua passagem não passou despercebida, visto que todos que tiveram contato com ele ficaram marcados pela paz que transmitia em cada palavra, de modo que sua partida precoce foi profundamente sentida por todos os seus pares. Da minha parte, agradeço a Deus pela honra de ter podido conviver e ter como amigo uma pessoa de tamanha evolução espiritual, sendo que as lições por ele deixadas foram determinantes na formação da pessoa que sou e na minha forma de ver a vida. Eduardo Chinato Ribeiro Abaixo, texto extraído do blog de Eduardo Chinato e publicado em 23 de abril de 2011, acerca do Marcelo: “Não costumo me lembrar dos sonhos que tenho. Dos que lembro, muitos são estranhos, desdobramentos do vivido durante o dia ou das preocupações diárias. No entanto, alguns são muito reais, daqueles que me fazem pensar que são desdobramentos, vividos em outros planos. Na noite que passou, tive um sonho assim. Estava eu em uma reunião, quando surgiu um grande amigo já desencarnado diante de mim, numa situação em que eu tinha ciência que estava diante de uma pessoa que não esta mais entre nós. O contato foi breve, mas festivo, e não me recordo de tudo o que conversamos, mas lembro que ele chegou me chamando de “Caríssimo”, como costumava fazer. Deu-me um abraço e colocou algo no bolso da minha camisa, um objeto que parecia ser uma destas medalhinhas religiosas e me disse “guarde em seu coração” e do modo como surgiu, se foi. O sonho prosseguiu mais um pouco, mas logo acordei, ainda sentido a sensação do encontro e do “objeto” que estaria em minha camisa… mas que ali não estava, pois já estava guardado no local solicitado. Se foi sonho ou um encontro no plano astral, nunca saberei. No entanto, mesmo que seja um sonho, fruto das descargas elétricas cerebrais, tenho que reconhecer que foi um sonho muito bom. Este caro amigo, que está entre as pessoas mais educadas, inteligentes, sábias e religiosas que já conheci, lutou com fé pela vida, deixando a todos que o conheceram a marca de que ali não estava um homem comum, mas sim um servo de Deus, que veio ao mundo para cumprir sua missão e retornar a pátria espiritual. Suas lições, sua amizade e sua fé sempre me fazem pensar e espero um dia ter a honra de realmente reencontrá-lo, para continuarmos nossas conversas acerca de sua fé católica e a minha fé espírita. Por fim, um recado ao meu querido amigo, caso ele possa me ouvir de onde estiver… saíba que não só o seu presente e seu abraço estão guardado no coração, mas também sua amizade e seu exemplo de vida. Fazes muita falta por aqui, Caríssimo!”
Meu nome é Júlio Carlos Richard Câmara, eu nasci no dia 03 de maio de 1949, em Lages. A maior parte da minha vida passei na Ilha de Santa Catarina. Sou pai do Marcelo Henrique Câmara, nascido no dia 28 de junho de 1979. Hoje moro em Coqueiros, na Rua Capitão Euclides de Castro, n.311, apto 101. Marcelo nasceu na maternidade Carlos Corrêa, apartamento 206. O primeiro endereço residencial do Marcelo foi à Rua Antonio Dib Mussi, no Centro de Florianópolis, tinha havido um problema no nosso apartamento na Prainha, ali era a casa da minha sogra, a nossa casa estava em construção e depois de uns 8 ou 9 meses nós nos mudamos para a casa que ficava na Rodovia Virgílio Várzea, nº22, com a nova numeração da prefeitura passou a ser nº 146. Ali Marcelo passou parte da meninice e juventude, morando até 1995. De 1995 a 1997 passou a morar na Praia Mole numa das casas da sobrinha da Leatrice, por um problema de inundação da casa da Virgílio Várzea. Com a venda daquela casa foi construída a casa da Rua Ostácio Fernandez da Silva, n.80, nos Ingleses, último endereço do Marcelo. Marcelo sempre foi uma criança feliz. Não sei se pelo fato de ter ido muito cedo para o maternal, deve ter ido com 8 ou 9 meses, se sociabilizou muito cedo. Sempre demonstrou uma personalidade muito forte, em que pese a sua mansidão e sua calma, sempre foi uma pessoa muito convicta. Uma infância de molecagens, brincadeiras, e eu como filho de militar, sempre quis ter uma postura de primeiro filho bonitinho, certinho, fazendo as coisas perfeitas, então Marcelo foi muito bem educado, em que pese eu não ser muito polido. Sempre demonstrou ser muito correto e muito ponderado em suas atitudes. É muito bom falar do meu filho, essa é a grande verdade. Foi crescendo e estudando, sempre um bom aluno. Não podia ver um pedaço de papel velho rasgado no chão, ele pegava pra ler. Muito atento às coisas, muito observador. Eu, por meu turno, queria que meu filho tivesse sido engenheiro. Um detalhe da infância do Marcelo. Ele me liga um dia e diz pra eu não arrumar nada de compromisso para o dia seguinte pois ele iria ser o orador da turma na escola Alferes Tiradentes. Então no dia da formatura, pela manhã, ele me disse que já estava com o discurso preparado e que iria jogar bola com o irmão. Eu então disse, “meu filho, não faz isso, nascesse para estudar…” O que aconteceu? Quebraram a perna do Marcelo e ele não pôde ir à formatura. Fez Direito, foi pra faculdade, graças a Deus fez o que ele quis. Ali pela 5ª ou 6ª fase já disse: “pai, eu vou ser promotor de justiça”, foi quando ele foi ser estagiário, sob concurso, no Ministério Público Federal. Marcelo é filho de uma professora, por mais que tenha cargo de direção os ganhos são poucos; eu, na época, era um pousadeiro, ganhava dinheiro no verão pra gastar durante o ano. Um dia eu perguntei pra ele: já que você estava tão certo de que queria ser promotor, porque não fez como os outros seus colegas que saíram da faculdade e foram cursar a Escola do Ministério Público de Santa Catarina, em vez de fazer o mestrado?”E ele me responde: “pai, o mestrado era de graça, e eu sabia que naquele momento não poderia pedir pra ti e para a mãe porque a escola era muito cara e vocês talvez não tivessem dinheiro para pagar e eu não queria deixá-los constrangidos” Isso me marcou muito porque ele poderia ter sido promotor muito mais tempo. Ele tinha esse senso de responsabilidade, de não querer constranger as pessoas. Durante um bom pedaço da vida do Marcelo era esse o ritual: almoçava aos sábados lá em casa, à tarde ele vinha para casa estudar onde eu o pegava por volta das 17h30min/18h para irmos à missa do Bianchini(porque pra mim missa era a que o Bianchini celebrava), depois passeávamos no Shopping e íamos comer nossa pizza que até levava o nome “Marcelo & Câmara”, com molho de alho, cebola, champignon e palmito, essa era a nossa pizza e o nosso ritual por cerca de 6 anos. Ele fazia a segunda fase de Direito, e eu levei ele e o Murilo contra a vontade para a missa (o único católico praticante na família era eu, a única coisa que não convivo muito é com a confissão). E quando eu estava na sacristia com aquela senhora que até hoje está lá, mandando rezar missa pela alma do meu pai, o Monsenhor Bianchini me chamou pois ele me conhecia de longa data e perguntou quem eram os meninos. “Posso conversar com os dois?” perguntou o padre. “Claro”, respondi. Ele deve ter percebido algum entusiasmo no Marcelo e convidou-o pra fazer o curso de Emaús. De 28 a 31/08/1997 ele fez o curso e dali pra frente a sua religiosidade, o seu aprofundamento, a sua maneira de ser, a sua prudência, a sua disciplina, a sua serenidade e mansidão, afloraram, acrescidos de todos os estudos. No sábado ele acordava, fazia o desjejum e livros. Ele chegava na minha casa 11h45, molhava os lábios na caipirinha só pra me agradar, ficava ali até 13/13h30min, voltava pra casa estudar até quando eu o pegava no final da tarde, e eu aposto que após a pizza do nativo ele metia a cara nos livros. Meu filho nasceu pra estudar. Só faltava ele levar o livro pra caminhar. Sempre foi assim, era dele. Acho que a única vez que o Marcelo fez uma impropriedade foi quando eu o levei na Cantinha do Vinho, no Estreito, e ele e minha companheira tomaram uma jarra de vinho tinto suave. E depois ele dizia, “pai, como eu fiz uma coisa dessa? Isso não convém…” Foi a única vez que eu lembro do Marcelo ter extrapolado em alguma coisa. Num sábado logo após a sua admissão como promotor, vamos dizer início de abril de 2007, mesmo ele estando depauperado pela doença, ele disse que ia almoçar rápido porque a sua mesa de trabalho estava tão cheia que não conseguia ver quem sentava a sua frente e precisava ir dar uma “limpada” nos processos. E ele foi lá pra Vara Criminal de São José para dar uma baixa nos processos. Consciência profissional. Poderia dizer, acabou meu expediente, estou aqui somente há alguns dias, mas não, foi trabalhar no sábado à tarde. As suas aulas. Uma vez eu fui na universidade e me meti como aluno. Era de um conhecimento e de uma lucidez, verdadeiro, íntegro, tinha uma postura de professor, o respeito dos alunos. A gente olhava no semblante das pessoas, o respeito que ele emanava, que impunha. Sua dedicação à docência e o seu esforço em permanecer em atividade durante o tratamento, rendeu-lhe a homenagem (póstuma) dos alunos da turma 2009.2 do curso de Direito do IES, que o elegeram “nome de turma”, por ocasião da cerimônia de formatura. Fui em algumas palestras para os jovens, dava pra ouvir zunir uma mosca, todos muito atentos e ele muito sereno, cônscio do que falava. Por volta de junho/julho de 2004, Marcelo disse pra mim que andava com umas dores nas costas, uma coisa desagradável. Levei-o numa massoterapeuta e o tempo foi passando, ele levando a vidinha dele. Levei-o também numa clínica de ortopedia e o médico atestou lombalgia, receitando analgésico, fisioterapia e massagens. Ocorre que, nada melhorou. Por volta das 10h da manhã do dia 18 de setembro de 2004, o celular tocou e era o Marcelo: “pai, a dor aumentou drasticamente e eu não estou sentindo muito os membros inferiores”. Corri pra casa do Marcelo, ele estava pálido e com as pontas dos dedos dos pés enegrecidas, com uma cor feia. Peguei sal grosso e fiquei escaldando os pés dele com água morna. Liguei para um primo meu que é ortopedista no Rio de Janeiro e ele assegurou que seria hérnia de disco pelos sintomas. Antes fosse… Um filho que nunca tinha tido qualquer problema de saúde, somente tinha precisado fazer um hemograma para o exame admissional no IES, quando fez uma bateria de raio-X e nada havia de errado. Seis meses depois, apareceu um baita tumor no mediastino de 5X7cm… Mas no dia 20/09, sob o diagnóstico de hérnia de disco, procurei Valdir Bush Filho, na Osteoclínica, na Rua Presidente Coutinho, ali o Marcelo já entrou de cadeira de rodas. O médico fez alguns testes e concluiu que havia um problema neurológico, encaminhando-o para a médica Gladis Lenz. Fui levando o Marcelo de cadeira de rodas pela rua, como um louco, cerca de 200 metros, para chegar na Clínica do Cérebro. Aí começou o suplício. Ela disse que já estava ligando para o hospital Servidores para internar o Marcelo para fazer alguns procedimentos. Eu senti alguma coisa… Iniciaram fazendo uma punção, porque a médica desconfiou de meningite. Mas o líquido veio branquinho, não era. Colocamos o Marcelo no carro para seguir para a Clínica Imagem, fazer uma ressonância magnética de toda a coluna. Por volta de 22h, chamei o técnico que fez o exame, apertei-o e ele disse que havia um tumor entre a D4 e a D5. Perdi o chão, já não sabia mais o que falava. A essa altura o Marcelo já não andava mais. Voltamos para o hospital Servidores, onde os parentes estavam, e levaram um choque com a notícia. Começou o nosso calvário, em 20/09/2004, por volta das 22h. Ali ele já ficou internado praticamente até início de dezembro. No dia seguinte, já abriram a coluna para descomprimir e coletar material. Era um tumor grande no mediastino e um menor na coluna. Se eles não fazem essa descompressão ele ficaria paraplégico. Após isso, ficou uns dois meses de andador. Depois em janeiro outra internação. Depois ele pediu para eu não acompanhá-lo mais nas consultas, pois tive um problema com o médico, e quem passou a acompanhá-lo foi a Leatrice. A parte mais penosa da doença, as internações, ficou com a Leatrice porque eu não teria aguentado. Ou teria me matado, ou matado o médico. Se o Marcelo ficou X dias internado, ela ficou TODOS. Eu fiquei com a parte administrativa. Quando a situação se complicou Marcelo foi pra Curitiba onde teve três ou quatro internações, culminou em 20/11/2007 o autólogo e veio a falecer em 20/03/2008. Numa das internações uma médica me disse que o Marcelo sempre teve leucemia. Houve uma época da doença que ele fazia quimioterapia até nos sábados e domingos, praticamente todo santo dia. O médico de Curitiba indicou uma quimioterapia importada que mataria a medula, zeraria a medula, pra depois fazer o autotransplante. Marcelo tomou uns comprimidos pequenos que descamavam toda a boca…Pra mim, o autotransplante de medula “mexeu” com a doença e acabou acelerando a morte. Ele teve a “melhora da morte”, foi passar os dias de carnaval em Gravatal com a mãe e me disse que tinha até comprado azeitonas para fazermos um aperitivo. Ele já estava com o retorno agendado junto ao Ministério Público. Roupa pronta e tudo. E veio a última internação. E o que não podia acontecer, aconteceu. Mas ele enfrentou a doença com muita serenidade. Ele confidenciou pra tia que jamais se queixaria de qualquer coisa para o pai ou para a mãe. A única vez que eu vi o Marcelo chorando, caindo uma lágrima, foi quando em 2005 os médicos descobriram que eu estava com uns pólipos, carcinoma. O maior objetivo do Marcelo na vida era ser o melhor no que ele fazia, não por presunção ou para se vangloriar, mas para poder colaborar com os outros, passar o conhecimento dele para as pessoas. Muito humilde no trajar, os últimos três sapatos fui eu que dei pra ele. Uma vez ele chegou no Shopping e eu disse:”ainda com esse sapato, meu filho?” e ele respondeu: “pai, ele ainda me serve”. Muito desprendimento. No pouco tempo de vida conseguiu ser o que sempre quis: professor e promotor de justiça.
Missão fácil e ao mesmo tempo extremamente difícil falar deste inesquecível, admirável, singular jovem de uma rara inteligência, de fina educação, de fino trato com as pessoas, cujo diálogo facilmente se alinhavava com seus interlocutores, de postura firme e comportamento acima das expectativas, em resumo, um verdadeiro gentleman. Lamentavelmente não tenho o dom da escrita para descrever meus sentimentos com relação ao meu querido “sobrinho” Marcelo, que, por desígnios superiores deixou nosso convívio terreno. É com extremo entusiasmo, e até por que não dizer com grande ponta de orgulho, que vou tecer algumas considerações sobre o Marcelo. Conheço-o, como todos meus familiares (esposa Graça, e meus filhos Alexandre, Alexsandre e Alain – carinhosamente tratados como “primos” pelo Marcelo e também por nosso querido Murilo “Negão” (irmão do Marcelo)). Acompanhei seus passos desde o nascimento no ano de 1979, pois a amizade familiar com seu progenitor “Cumpadi” Julio Carlos Richard Câmara e com a Comadre Leatrice Pavan Câmara (Mãe do Marcelo), padrinhos de meu filho Alain. Seus Pais deram-lhe refinada educação e, a dedicação do Marcelo pelos estudos logo frutificaram. Aluno exemplar deste o “prézinho”, depois primeiro e segundo graus, logo logo passando no vestibular da UFSC no curso de Direito, dedicando-se com afinco aos estudos veio a graduar-se em Direito, com pós-graduação e Mestrado na Área das Ciências Jurídicas, foi professor Università ¡rio e, também, como grande feito, num concorridíssimo concurso para o Ministério Público de Santa Catarina, no qual concorriam quase três mil candidatos, logrou excelente aprovação, alcançando a tão cobiçada/concorrida e almejada carreira de PROMOTOR DE JUSTIÇA ESTADUAL. Tive o privilégio de participar ativamente de todas estas etapas vencidas pelo Marcelo, desde a sua formatura quando se graduou nas Ciências Jurídicas, bem como, na inesquecível Posse como PROMOTOR DE JUSTIÇA. Que Vitória, que Honra para o Marcelo, para seus familiares e particularmente para minha pessoa e meus familiares que sempre tivemos muita estima e torcíamos desmedidamente pelo alcançamento dos objetivos traçados pelo Marcelo. Como já disse, grande figura o Marcelo, “menino de fé”, firme em suas convicções e praticas religiosas, ajudando na formação de jovens, participando de seminários voltados aos estudos religiosos, caquetizando e dirigindo grupo de jovens. Marcelo, desde muito cedo já se diferenciava de seus pares da mesma idade, tendo pensamentos ideais e ações norteadas pela pratica de ações virtuosas, visando sempre o bem estar social do próximo. Praticava com desenvoltura a tolerância, tendo como uma de suas frases constantemente usadas, mas que tinham um profundo sentido a: “Não convém”, pronunciada sempre no momento de uma decisão onde o açodamento, talvez direcionasse para um desfecho não acertado, ele sempre dizia “não convém”, não com o sentido de uma negativa, muito pelo contrario, servia para aprofundar-se mais na meditação sobre o assunto para tomar-se uma atitude correta, o “não convém” era praticamente um convite para reflexão naquele momento. Muito sábia esta sua “fuga”. ”Pareço estar ouvindo em muitas conversas juntamente com seu pai “Câmara” o Marcelo dizer “Não Paizão, não convém ” “Tio Ivan,não convém”: por certo seu Pai, de rompante (figura extremame nte sério-correto e pragmática que quer ver tudo resolvido num piscar de olhos) emitir parecer ou tomando atitude que mereceria uma melhor aquilatação”. Neste momento o “Não convém” era de extrema valia.. Poderia ficar discorrendo páginas e mais páginas sobre o Marcelo, desde sua Infância, que meus filhos Alexandre, Alexsandre e Alain tiveram o privilégio de um convívio amiúde, nas brincadeiras em sua residência, quer andando com triciclos e “jipinhos” e outras invencionices, tudo devidamente registrado em fotos que fizemos questão de emoldurar muitas delas, para frequentes deleites daquela época. Mas, a vida nos reserva momentos que por certo torceríamos para que nunca acontecessem, contudo, não podemos fugir dos desígnios do Supremo Criador. Eis que surge o fatídico dia 20 de setembro de 2004. Um telefonema de meu Compadre Julio Carlos Richard Câmara, me colocava a par, com detalhes, de um desconforto sentido pelo Marcelo, tendo imediatamente ido ao encontro dele e de outros familiares, pois ele precisava fazer uns exames mais aprofundados (tomografia/ressonância) em clinica especializada junto ao Hospital de Caridade. Para lá dirigimo-nos por volta das 20:00 horas e acompanhamos o Marcelo para os referidos exames. Concluídos os mesmos, em análise preliminar direcionava para uma lesão junto a Cervical, cujo diagnóstico preciso carecia de avaliação de especialista. Efetuada a análise laboratorial, surge o indicativo de um tumor, em principio não agressivo, não obstante, surge a recomendação médica de uma urgente cirurgia no local apontado, até mesmo para coleta de material para análise patológica. Acompanhei passo a passo o Marcelo junto ao Hospital Governador Celso Ramos, onde se submeteu ao pr ocedimento cirúrgico. Meu Compadre Julio Câmara solicitou (acho que não se sentia preparado face ao baque que a todos pegou no momento), para que levasse o material recolhido para análise laboratorial. Outros diagnósticos recomendavam uma série de outros procedimentos visando à recuperação do Marcelo. Culminaram com inúmeras internações, aplicações quimioterápicas e radioterápicas exigidas na ocasião. Em resumo, o Marcelo teve força e fibra para submeter-se a extenuantes internações hospitalares, regramentos e inúmeros outros procedimentos diários, com centenas de coletas de sangue, etc., Seus familiares acompanhavam incansáveis a todos os procedimentos, dando total apoio ao Marcelo. Indescritível a força, a fé, a que o Marcelo submetia-se a todas as etapas do tratamento, com perseverança, equilíbrio e tolerância dando-nos uma verdadeira lição de vida. Engraçado, que ao invés de nós o encorajarmos, ele é que nos encorajava, encarando aquele s momentos com extrema paciência e fé. No transcurso de todas as etapas de tratamento, o Marcelo não abdicou de nada, levando com normalidade a vida, continuou dando aulas, prosseguindo suas atividades junto aos Grupos de Jovens e continuando sua carreira laboral como Promotor de Justiça. Outro momento que marcou, foi uma nova oscilação de Saúde ocorrida com o Marcelo, mais exatamente na noite dia 04 de junho de 2007 (lembro-me bem da data por que era véspera de meu aniversário). Meu “Cumpadi” Júlio ligou-me dizendo que o Marcelo tinha sido acometido de um AVC, imediatamente dirigi-me a emergência do Hospital de Caridade em Florianópolis, onde o visitei no momento em que estava sendo assistido pela equipe médica (o quadro não era dos melhores tendo requerido inclusive deslocamento na madrugado do dia 05/06 a um Centro Cirúrgico especializado na cidade de Blumenau). Naquela noite, no hall de entrada da emergência do Hospital de Caridade, fiz uma particular promessa, rogando ao Grande Arquiteto com toda fé pela recuperação doMarcelo, que primeiramente lhe mantivesse com vida e também que não o deixa-se com sequelas de qualquer tipo, muito comum ao quadro que ele vivenciava no momento, o que também representaria para mim um grande presente de aniversário. Não tenho dúvidas, O Senhor me ouviu e atendeu minhas preces. O Marcelo recuperou-se do AVC, tendo seguido seus dias, continuando com todas suas ações, vivendo intensamente todos os momentos, até o dia 20 de Março de 2008. Nesta data estava juntamente com minha esposa, com o Compadre Julio, com sua Mãe Leatrice e inúmeros outros familiares e amigos, no seu leito hospitalar, onde Marcelo nos deixou (Grande dor e angústia nos acometeram no momento). Tivemos que achar forças para superar tão doloroso episódio. Mas, entendemos que o Senhor Deus precisou de sua companhia para dar continuidade às ações que aqui na vida terrena Marcelo praticava com maestria – a compreensão, o amor e auxilio ao próximo, as atitudes diferenciadas, a tenacidade de sua atuação como Promotor de Justiça, que apesar dos espinhos da nobre função, sabia como poucos, tirar pontos positivos até mesmo das atitudes que exigiam a rigidez de uma sentença condenatória, a qual, depois de aplicada, era acompanhada de conselhos dados pelo Marcelo, visando à recuperação e reenquadramento ao convício social do merecedor da sentença. Estas atitudes o tornavam uma pessoa d i f e r e n t e. Particularmente tenho o Marcelo apenas distante fisicamente, mas em pensamentos eu e meus familiares o temos em todos os instantes. Em minhas orações diárias elevo meus pensamentos rogando ao Criador que o mantenha sempre iluminado, para que ele continue a irradiar bons fluídos como sempre o fez. Em meus momentos de aflição/ansiedade, recorro ao Marcelo. A lembrança de seu “Eu” é confortante, me enche de Paz e sempre traz uma luz para o direcionamento a seguir. Nestes momentos, como “Convém”. Minha esposa Graça, sempre me diz, o Marcelo é diferente, o Marcelo é um “SANTO”, pensamento e percepção que também faço coro. Aos Pais do Marcelo, Julio Câmara e Leatrice sou testemunho dos esforços desmedidos pela recuperação do Marcelo, pondo em pratica todas as recomendações médicas indicadas, inclusive com um complexo Auto-transplante Medular efetuado na cidade de Curitiba. Tenham certeza, nada foi em vão, pois um segundo a mais ganho de vida pelo Marcelo foi-nos um valiosíssimo presente. Até um dia, Marcelo, onde nos encontraremos num Plano mais Elevado, pois tenho certeza que estás sempre por perto, de teus Pais, avós, familiares, tios, primos, sobrinhos e inúmeros amigos que aqui cultivastes, e, particularmente de minha pessoa, nos acompanhando, e aconselhando. Florianópolis (SC), 23 de dezembro de 2012.
Conheci o Marcelinho no Grupo São Paulo, grupo de jovens do Movimento de Emaús, e desde então fomos estabelecendo uma relação de amizade. Não precisava de muito tempo próximo a ele para logo perceber que se tratava de uma pessoa especial. Era comum perceber o quanto as pessoas que conviviam com ele o admiravam tanto os mais novos quanto os mais velhos do que ele. O Marcelinho era o conselheiro de vários amigos, e para os mais diversos assuntos. Era uma pessoa extremamente inteligente e culta. Senão me engano foi o mestre em direito mais novo do estado de Santa Catarina, acho que na época tinha 24 anos ou algo próximo disso. Amante dos estudos, habitualmente estava envolvido em algum curso, o último que tive conhecimento era da língua francesa. Era um amigo sempre disponível, amigo querido, que fazia questão de oferecer seus ouvidos, para quem dele precisasse. Era a quem eu recorria com freqüência na certeza de que teria a palavra certa na hora certa, o acolhimento que só ele sabia dar. Nas festas da Irmandade do Divino Espírito Santo, era famoso o cachorro-quente oferecido na barraca do Grupo São Paulo. Brincávamos que era um cachorro-quente “bento” quando ofertado pelo Marcelinho, porque além de ser tocado por suas mãos abençoadas, vinha acompanhado de um maravilhoso “paz e bem” que ele mesmo proferia com todo o amor e devoção a esta fé em Cristo que o fazia se destacar em meio a tantos cristãos convictos. Nas reuniões de grupo tínhamos muitos momentos de descontração, e todos procuravam saber mais da vida do Marcelinho, do dia a dia mesmo, e ele sempre bem humorado e com aquela humildade que lhe era nata relatava histórias principalmente da convivência com seu irmão, Murilo Eduardo, mais conhecido como “Murilinho” apesar de sua aparência em nada assemelhar ao sufixo “inho”. Essas histórias eram todas permeadas de muito amor e carinho. A forma de ser e de estar no mundo do Marcelinho instigava saber se ele havia nascido assim. A quem diga que ele era um jovem “normal” como qualquer outro com a mesma idade, mas que a partir do retiro de Emaús foi convertido de tal forma que por onde passava ou falava chamava a atenção em razão de seu comportamento Santo de ser. Era educadíssimo. Nunca esqueço de uma ocasião onde a reunião do grupo foi na minha casa e minha mãe atendeu ao interfone dizendo: “Não entendi o nome, mas é uma pessoa muito educada”, todos os presentes se olharam e disseram ao mesmo tempo: “é o Marcelinho”. Quando tive conhecimento de que ele estava doente, e que se tratava de uma doença grave, num primeiro momento não consegui compreender porque Deus não teria afastado dele este cálice, um ser humano tão especial, tão importante para disseminar a fé e o amor ao próximo aqui na terra, uma pessoa que transmitia paz simplesmente por sua presença num lugar, que quando falava conseguia calar a todos como se todos o quisessem ouvir cada vez mais e mais e não sentissem necessidade de interrompê-lo. Tudo nele era diferente, especial. A voz, o jeito de falar, de se portar, de ouvir. O simples gesto de ouvir era especial demais, ele ouvia com o coração, transmitia seu amor gratuitamente a quem dele recorreria. Enfim, gerou não só em mim, mas acredito que em muitos que o conheciam e que não tinham (ou não tem) a mesma fé que ele tinha, uma indignação e uma revolta sem tamanho. Como era possível??? A possibilidade de “perdê-lo” trazia medo, insegurança, sensaçà £o de abandono. Logo no primeiro contato com ele após o descobrimento da doença, mais uma vez ele surpreendeu, quando deveria estar sendo acolhido e confortado era ele quem acolhia e confortava os seus. Ele dava lições de vida o tempo inteiro. Não que tivesse a intenção de fazê-lo, mas simplesmente porque ele vivia o amor, vivia a fé que evangelizava e confiava plenamente no caminho que Deus havia preparado para ele. Não que em muitos momentos não tivesse sentido medo ou tristeza, mas que mesmo sentido dor acreditava que o melhor estava por vir. Nunca vou esquecer de uma ocasião em que estava comemorando meu aniversário na Pizzaria San Francesco (ponto de encontro do Grupo São Paulo) e que tinha consciência de que o Marcelinho não poderia ir em razão de neste mesmo dia ter realizado uma sessão de quimioterapia. E de repente vimos um taxi parando na entrada e o vi descendo de muletas…foi emocionante demais! E claro que fui logo ao seu encontro perguntando se estava tudo bem, dizendo que ele não precisava ter se incomodado em ir para a Pizzaria, que deveria estar descansando, quando ele de um modo muito peculiar e habitual, colocou seu dedo indicador na ponta do meu nariz e disse: “eu não poderia deixar de participar da comemoração do aniversário da minha amiga querida” (sic). Outro momento que me recordo com emoção foi na ocasião do meu casamento em que ele se encontrava internado e que algumas horas antes da cerimônia me ligou justificando sua ausência e desejando toda a felicidade do mundo. Infelizmente pouco mais de um ano depois eu estava me separando, foi um dos momentos mais dolorosos e traumáticos da minha vida, e como não poderia deixar de ser, lá estava o Marcelinho me dando todo o apoio e me orientando quantos aos procedimentos para entrar com o processo de nulidade matrimonial. E era uma das minhas testemunhas no processo junto ao Tribunal Eclesiástico, processo este que tramitou juntamente com o processo de separação judicial no Civil. Foi um período de muito sofrimento, de muita angústia e de dificuldades em vários sentidos. O apoio da minha família e dos amigos foi fundamental para eu superar essa fase e nos momentos de maior sofrimento recorria ao Marcelinho que sempre tinha palavras para confortar a saúde da alma, da mente e do coração. Eu sempre dizia para ele que o fato de estar ao seu lado e/ou segurando sua mão já era o suficiente para se sentir em paz. O Marcelinho sempre surpreendeu e não foi diferente com sua doença. Ainda que se tratasse de uma doença que só de ouvir o nome já causava temor nas pessoas, o Marcelinho não se deixou abater, procurou se informar sobre suas reais perspectivas de cura e os tratamentos mais adequados e lutou por sua vida. E em meio ao tratamento, que todos que tem conhecimento do assunto sabem dos fortes efeitos colaterais, permaneceu se dedicando ao que acreditava ser seu ofício. Estudou para prestar concurso para Promotor do Ministério Público em meio às internações, as transfusões de sangue, de plaquetas, do mal-estar ocasionado pelas quimio e radioterapias. E lutando contra as fortes dores que esse mal (doença) acomete, passou com louvor e logo tomou posse. Este foi um momento muito importante na vida dele e de muita felicidade. No período da posse, foi possível festejar e comemorar não só essa conquista, mas também a cura. Naquele momento, segundos o médicos, o Marceli nho podia considerar-se curado. Contudo, o próprio Marcelinho já havia falado do forte tratamento de quimio que havia se submetido, uma vez que o tipo de câncer que teve tinha muitas chances de recidiva e, portanto como ele mesmo falava estava realizando uma quimio bastante agressiva para “não sobrar pedra sobre pedra” (sic). Infelizmente alguns meses depois tivemos a fatídica notícia de que a doença havia retornado, agora em forma de leucemia. Foi um “baque” todo aquele sentimento de injustiça, de porque com ele, de indignação voltou! Não era justo ele passar por tanto sofrimento novamente. E mais uma vez pude constatar a santidade desse amigo tão querido. Liguei para o Marcelinho perguntando como ele estava se sentindo, e ele discorreu sobre a generosidade de Jesus. Lembro como se fosse hoje das palavras dele relatando o quanto Deus tinha sido generoso com ele, que aguardou ele ter estabilidade financeira (por conta do cargo de promotor) e estar amparado por planos de saúde para então ter a recidiva da doença, que havia procurado o melhor especialista de transplantes de medulas no Brasil, e que a clínica deste médico era em Curitiba, que iria fazer o auto-transplante de medula, método pioneiro e revolucionário da medicina. Na ocasião verbalizou com otimismo suas conquistas, seu processo de tratamento, e seu testemunho de fé. Esta luta exigiu mais do Marcelinho…e ele próprio sentiu isso e numa reunião do grupo verbalizou sobre a importância de sabermos ouvir a Deus e de confiarmos no caminho que ele preparou para cada um de nós. Pouco tempo depois o Marcelinho nos deixou…era dia 20 de março de 2008. Eu senti muita dor e muito remorso porque como estava envolvida ainda com meu processo de separação, fiquei muitas vezes de ir na casa dele para fazer uma visita tendo a certeza de que por acreditar que ele era santo que Deus jamais o levaria tão cedo e que acabei perdendo tempo demais e não consegui me despedir desse amigo tão especial. Isso me corroeu a alma, senti uma dor imensa, muita tristeza e muita indignação. Minha fé ficou abalada com esta perda. Não conseguia me conformar. Pensei que se o Marcelinho, que para mim era santo em vida e ouso afirmar que foi o ser humano que tinha o comportamento mais semelhante ao que Jesus Cristo pregou no evangelho, tinha passado por tudo aqu ilo, então de que valia ser assim… Levei muito tempo para entender que Deus também precisa de pessoas especiais ao seu lado. E compreendi que o lugar do Marcelinho era lá mesmo, no lugar mais especial que existe, que é ao lado de Deus. Enfim…meu processo de separação foi litigioso e já se arrastava por alguns meses sem qualquer perspectiva de definição, meu ex-marido não aceitava qualquer acordo que eu tentasse propor, até que estava chegando o dia da audiência e eu não me sentia preparada para vê-lo. Pedi a intercessão do Marcelinho com toda devoção e carinho que eu já tinha por ele em vida, pedi para que eu não precisasse vê-lo novamente, que as coisas se definissem, que isso tudo tivesse logo um fim. E para minha surpresa dois dias antes da audiência meu advogado me liga dizendo que meu ex-marido tinha aceitado o acordo e que eu não precisaria comparecer na audiência, que ele próprio levaria o documento assinado, que a separação se transformaria em consensual. Neste momento eu tive a certeza de que meu amigo lá de cima agiu em minha causa…usou seus instrumentais jurídicos. Tive um momento de comoção, chorei muito, era muita emoção, mas neste momento recordo meu choro de f elicidade foi mais em razão de acreditar que mais uma vez pude contar com o Marcelinho do que com o fato da separação em si ter sido consumada. Agradeci muito este acontecimento. Coincidência ou não vai fazer 7 anos que me separei e NUNCA mais vi meu ex-marido.Estou casada Há 3 anos e tenho um filho lindo de 1 ano e 6 meses fruto de muito amor! Foi com muita alegria que no final do ano de 2013 alcancei outra graça maravilhosa e com toda a certeza pela intercessão do meu amigo querido. Saiu a decisão do Tribunal Eclesiástico e nas duas instâncias meu casamento foi considerado nulo, foram quase 7 anos de espera mas agora me encontro livre para contrair o matrimonio. Estou muito feliz por isto. O Marcelinho seria uma das minhas testemunhas, mas em razão da morosidade do processo e da sua ida precoce para o céu, testemunhou por mim lá de cima… Não tenho dúvidas de que ele fez, e muito bem, o seu trabalho jurídico de lá 😉 Geralmente recorro ao Marcelinho para pedir serenidade nas minhas ações, saúde para minha família e perseverança na fé. Pra mim o Marcelinho foi santo em vida e, portanto permanece sendo. Mas ao contrário do habitual, penso que o dia em que ele deve ser homenageado é o dia de seu nascimento e não de sua morte. Dia 28.06 é o dia do aniversário dele, um belo dia para comemorar o dia do Santo Marcelinho!
Pouco pude conviver com o Marcelinho. Muito ouvia falar sobre ele e em duas oportunidades tive a graça de estar com ele. A 1ª em um Curso de Emaús em que foi falar sobre Eucaristia e tive a oportunidade de conversar por 10 minutos com ele. A 2ª em uma reunião do grupo São Paulo, em que era convidado especial. O que mais me chamou atenção em sua personalidade era sua humildade. Era sabido que Marcelinho era um cara que levava a fé muito a sério, buscava seguir fielmente os preceitos de nossa fé católica, bem como defender e pregar tudo aquilo que é certo aos olhos do Pai. No entanto essa seriedade não se transformava em amargor, tristeza, imposições, raiva ou qualquer outra coisa ruim. Era MUITO humilde e sabia colocar-se muito bem, respeitando opiniões e entendimentos do próximo. Penso que ele deixou um grande exemplo nesse sentido, para que não nos deixemos levar pela soberba da “santificação”. Lendo, então, sua biografia contida neste site tenho ainda mais certeza disso! Grande cara, grande figura! Daquelas raras!
Meu tempo de convivência com o Marcelo foi muito breve. O que mais me marcou foi quando participamos juntos do meu primeiro retiro do Opus Dei 2005 ou 2006, não me lembro. Num dos dias do retiro Marcelo foi quem puxou o Terço, e ele o fez com muita caridade, muita concentração, de forma pausada sem ser cansativo – pudera havia anos que eu não rezava um Terço, acho que nem sabia como fazê-lo – e sua voz era bastante serena e… passou num instante. Logo depois eu pensei “Puxa quero saber rezar assim!”. Nunca disse isso pra ele… Bom o fato é que até hoje quando o momento não permite que eu reze o Terço em voz alta, sabe que a voz que eu ouço “puxando” o Terço não é a minha? Quando estou atribulado, no meio da correria diária mas sei que preciso parar um pouco para rezar ou meditar o Terço é a voz do Marcelo que me vem na mente. Sou grato por isso e quando encontro alguma dificuldade em seguir com alguma prática de caridade ou algo assim eu penso “Como é que será que o Marcelo faria”. É isso… Daí acaba saindo.
Desejaria declarar, sem querer me antecipar ao pronunciamento da Igreja, que após ter convivido com o Marcelo Henrique Câmara, por cerca de três anos, os últimos de sua vida, tenho para mim que levou uma vida santa. Possuía uma delicadeza de alma, uma paz de espírito e alegria impressionantes. Identificou-se plenamente com Jesus Cristo, santificando todas as situações e atividades da sua vida. São inúmeros os depoimentos de parentes, amigos e colegas, que manifestam que a proximidade e o exemplo do Marcelo, levou-os a se aproximarem mais de Jesus Cristo e a conhecê-lo melhor. A sua identificação com Nosso Senhor Jesus Cristo se deu, principalmente, ao tomar a Cruz de Cristo sobre os ombros com paz, alegria e garbo cristãos. Abraçou com fé e amor a Cruz da enfermidade prolongada, que Deus lhe confiou. Ao mesmo tempo que colocava todos os meios ao seu alcance para se curar da enfermidade, aceitava com amor filial a vontade de Deus. Oferecia a enfermidade a Deus e os sofrimentos que essa lhe proporcionavam, unindo-os à Cruz de Cristo, pela conversão dos parentes e amigos, bem como por todas as vocações da Igreja: sacerdotes, religiosos e leigos, pais e mães de família. Dotado de exímios talentos intelectuais, procurou rendê-los ao máximo, através da dedicação aos cursos acadêmicos e ao estudo da doutrina católica, colocando-os a serviço dos demais e do bem comum. Santificou seus estudos e trabalhos, realizando-os com extremada perfeição, retidão de intenção e amor a Deus e aos demais. Desde a sua conversão dedicou-se intensamente ao apostolado. Nos primeiros anos após a sua conversão, procurava dedicar-se à orientação de outros jovens, dentro do movimento Emaús, ministrando palestras nos retiros do movimento e presidindo, por vários anos, o grupo de jovens denominado “São Paulo”. Quando veio a conhecer os ensinamentos e a mensagem de São Josemaria Escrivá e principalmente depois de discernir a sua vocação e pedir admissão à Prelazia do Opus Dei como fiel supernumerário, dedicou-se mais profundamente ao apostolado de amizade e confidência com parentes, amigos e colegas de trabalho. A seguir, apresento algumas das minhas recordações que manifestam algumas virtudes heroicas do Marcelo Henrique Câmara. Apresentá-las-ei, classificando-as por virtudes cristãs. AMOR A DEUS Empenhava-se para cumprir o seu plano de vida espiritual, mesmo enfermo e mal disposto devido aos tratamentos médicos, composto de Missa e comunhões diárias, direção espiritual e confissão semanal, duas meias horas de oração diária, visita ao Santíssimo Sacramento, terço, e outras práticas de piedade menores. Ficava visivelmente contente e muito agradecido de que fôssemos ao hospital visitá-lo para atendê-lo espiritualmente, quando se encontrava internado. Tinha uma profunda devoção ao Santíssimo Sacramento. No movimento de Emaús ministrou algumas vezes palestras sobre a Eucaristia, na qual pode demonstrar seu amor a Jesus Sacramentado. Merece menção a sua intervenção no 65º Emaús Masculino em 2005, quando em intervalo de internação hospitalar, deu com grande esforço a palestra sobre a Eucaristia em cadeira de rodas. Identificou-se plenamente com a espiritualidade do Opus Dei sobre a santificação do trabalho e de todas as circunstâncias da sua vida. Procurava transformar os seus estudos e trabalhos, realizados com extremada perfeição, mesmo na enfermidade, em verdadeira oração. Procurava viver na presença de Deus, durante todo o seu dia, santificando todas as atividades e situações de sua vida. CARIDADE Marcelo era extremamente acolhedor. Sempre sorria para as pessoas, mesmo quando sentia dores provocadas pela doença. Tinha uma grande disposição em ajudar os seus colegas e amigos no que fosse preciso. Quando se encontrava no hospital, preocupava-se mais com a inquietação que seu estado de saúde provocava na sua família do que consigo. Muitas pessoas que iam visitar o Marcelo Câmara no hospital, com o intuito de confortá-lo na sua enfermidade, saíam reconfortadas pelo Marcelo, que lhes transmitia uma paz e alegria maravilhosas. Procurava se interessar e conversar sobre os assuntos e sobre a vida das pessoas que iam visitá-lo, em vez de falar da sua enfermidade[1]. Certa vez, ao visitá-lo no hospital, fui recebido com um belo sorriso que me impressionou. Neste mesmo dia Marcelo me confidenciou que estava com uma dor de cabeça insuportável. Mesmo assim sorria a todos. A sua caridade era ordenada. Manifestava em primeiro lugar a preocupação com os parentes mais próximos, principalmente com o pai e o irmão, pois desejava aproximá-los de Deus. Pediu ao seu amigo engenheiro João Carlos Sobenes, que procurasse o seu pai para tentar aproximá-lo dos meios de formação católicos. Levou o seu irmão Murilo a palestras de formação cristã. Há anos atrás, quando seu irmão Murilo estava tendo muita dificuldade na elaboração do seu trabalho de fim de curso na faculdade de direito, e não conseguiria terminá-lo a tempo, Marcelo se ofereceu para ajudá-lo, orientando-o no seu trabalho. Mas, infelizmente, o trabalho acabou não sendo aceito pelo professor orientador que alegou a impossibilidade de Murilo elaborar um trabalho de tão elevado nível acadêmico[2]. O seu relacionamento era de fraternidade repleta de detalhes de carinho e atenção. Seus amigos mais próximos nutriam um grande respeito pelo Marcelo, principalmente pela forma edificante com que ele levava a sua enfermidade e se santificava através dos seus estudos e trabalho[3]. Nunca ouvi o Marcelo fazer crítica a ninguém. Muitas pessoas diziam: “o Marcelo é incapaz de falar mal de quem quer que seja”[4]. Vivia com heroicidade a virtude da paciência e da mansidão. Não deixava de fazer a correção fraterna quando necessário. Certa vez, viajava para Curitiba com um grupo de amigos e os que estavam no mesmo carro começaram a contar piadas. O nível moral das piadas começou a abaixar e Marcelo interveio dizendo que se não elevasse o nível das piadas, seria melhor parar de contá-las. Tratava todas as pessoas como filhas de Deus. Significativa foi ocasião em que, após obter uma justa condenação para o autor de um delito, procurou dar-lhe conselhos. Disse-lhe que aproveitasse o tempo em que estaria recluso para refletir sobre sua vida e mudar de rumo. E que, principalmente, buscasse a Deus. Não se conformava com a estrita justiça humana, vivia a caridade com todos. Outro detalhe pequeno, mas significativo, é que a secretária que recebeu a sua inscrição para o exame do ministério público, ficou tão impressionada com a amabilidade e cordialidade com que o Marcelo a tratou, que a partir daquele dia passou a acompanhar o desempenho do Marcelo no concurso para promotor, desejando que ele fosse aprovado. FÉ Possuía um excelente conhecimento da fé católica, estudando-a constantemente. Expunha a doutrina católica com grande sabedoria a pessoas com menos formação. Defendia a doutrina católica sempre que ela era atacada por professores e colegas universitários. ESPERANÇA Nunca se deixava abater, nem mesmo quando se enfraqueceu fisicamente devido aos tratamentos de quimioterapia e radioterapia. Confiava plenamente na providência divina. Não se queixava de nada. Sua mãe que o acompanhava sempre dizia: é muito fácil cuidar do Marcelo, pois tudo está bem para ele. Uniu seus próprios sofrimentos e os que causava aos parentes e amigos à Cruz de Cristo, levando-os com sentido redentor. Marcelo dizia, especialmente à mãe, para não se preocupar caso deixasse essa vida, pois “do outro lado seria melhor do que aqui”. Sua aceitação e entrega aos desígnios de Deus era completa, ouvindo-se, também, de seus lábios, a expressão “se fico nesta vida, é pela misericórdia de Deus, se vou para a vida eterna, também é pela a misericórdia de Deus”. LABORIOSIDADE No dia do seu funeral, uma das suas colegas de trabalho fez um comentário que me impressionou, por ser semelhante ao que muitas pessoas fizeram sobre Jesus Cristo, e está recolhido no evangelho: “o Marcelinho fazia tudo bem feito”. Alguns colegas de faculdade, qualificavam o Marcelo como “aluno brilhante”, devido à sua inteligência impar e a sua dedicação aos estudos[5]. Penso que o Marcelo Câmara, nos seus 28 de vida, era uma das pessoas mais inteligentes que conheci até hoje. E desenvolveu esse dom de Deus. Chamava a atenção pela linearidade do seu raciocínio, a clareza das suas exposições, o brilhantismo dos seus argumentos. Quando se preparava para o concurso do ministério público, estando debilitado pela doença e se submetendo a diversos tratamentos médicos, não deixava de se dedicar intensamente aos estudos. Realizou os exames do concurso, com sua saúde debilitada, e mesmo assim conseguiu ser aprovado em quinto lugar na classificação geral. Manifestou que gostaria passar no concurso do Ministério Público para servir aos demais. Pensava na influência benéfica que poderia ter na sociedade. Recordo-me que ao assumir a função de promotor no ministério Público, mesmo debilitado pela enfermidade, tinha a preocupação de dar vazão aos diversos processos que estavam acumulados. HUMILDADE Impressionava a sua humildade, principalmente ao ter tantos talentos. Era uma pessoa totalmente acessível e simples. E que não se envaidecia pelas suas qualidades, ao contrário reconhecia que tudo era dom de Deus e as colocava a serviço dos demais. Para não se distanciar dos outros fazia o esforço de falar de forma simples, e algumas vezes chegava a empregar algumas gírias, para que o seu belo português não criasse barreira para os demais, que não possuíam o mesmo vocabulário. Nunca pretendeu mostrar a erudição, que possuía. MANSIDÃO O Marcelo possuía a virtude da mansidão. Não se escandalizava, nem se impacientava com os defeitos dos demais. Seu pai Júlio nos contou algo muito bonito no dia do seu enterro. Quando alguém poderia atuar mal, o Marcelo o advertia cheio de delicadeza e caridade, dizendo: “isso não convém”. CASTIDADE Quando eu passei a atendê-lo, já se encontrava enfermo, e por isso não procurava namorar nenhuma moça. Queria primeiro estar curado, pois não achava justo se relacionar com uma moça, sem ter uma perspectiva clara de um futuro casamento. Nutria um profundo respeito pelas mulheres. Procurava olhar para as mulheres com olhar puro. Tinha o costume de ao ver uma mulher bonita elevar o coração a Deus pela beleza da criação, sobrenaturalizando os seus sentimentos[6]. DESPRENDIMENTO MATERIAL Ao receber os dois primeiros salários do concurso do Ministério Público, destinou um deles a um empreendimento apostólico da Igreja em Florianópolis. [1] Vitor Santos, amigo pessoal de Marcelo, dá o mesmo testemunho sobre o Marcelo Câmara. [2] Leonardo Mori informou-me que depois da morte do Marcelo, seu irmão Murilo decidiu terminar a faculdade, apresentando um novo trabalho de final de curso. Também estudou para um concurso público, no qual foi aprovado. [3] João Carlos Sobenes concorda com esse testemunho. [4] Entre eles se encontra Vitor Santos, amigo pessoal do Marcelo Câmara. [5] Entre eles se encontra Samuel Naspolini, colega de faculdade e primeiro colocado no mesmo concurso para o ministério público no qual Marcelo Câmara foi aprovado. [6]ZulmarKoerich, amigo pessoal de Marcelo Câmara, conhecia este hábito do Marcelo.
Conheci Marcelo Henrique quando começou a estudar na Biblioteca do Ministério Público para o concurso de ingresso à Carreira de Promotor de Justiça. Marcelo foi a criatura mais significativa tratando de humanidade. Sua fala tranquila de uma educação angelical, ensinou-me que a paciência é tão nobre quanto o amor, quando lhe disse em conversa informal, que eu talvez não amasse tanto o próximo como deveria, mas que eu tinha muita paciência para escutar e ajudar as pessoas. (A poesia que fiz em homenagem a Marcelo Henrique Câmara em 25/08/2008) Ensinando e aprendendo Sentado à mesa com seu jeito tão amado Livre absorto em seus pensamentos Concentra-se nos sábios ensinamentos Da obra que não lembro o intitulado Aperta entre os dedos o marcador Ofereço-lhe um simples cafezinho Agradece com um gesto de carinho E continua o seu estudo com fervor Depois de muito estudo venceu o concursado Mostrou ao mundo que ninguém é derrotado O que aprendeu levou pra Deus no outro lado Ele foi grande na sua paciência e soube esperar Havia luz e uma grandeza em seu olhar Mudou um pouco quando veio me abraçar Era a despedida se mudaria para outro lar Neste mundo repassou seu conhecimento Foi com ele que pela primeira vez ouvi A oração do Santo Anjo, rezada em latim Fiquei emocionada…Ele rezou só para mim Tweber De fato hoje sei que Marcelo não era só um moço sábio e bom, ele tinha qualidades que nos meus 64 anos de idade, não encontrei em ninguém. Havia uma doçura no seu semblante, mesmo debilitado e necessitando da ajuda de sua mãe para frequentar os estudos, nunca em nenhum dia ele entrou na biblioteca sem cumprimentar a todos sorrindo. Inúmeras vezes sentou-se comigo para conversar e nestas conversas sempre me aconselhou a nunca desistir da paciência que eu tinha com os jovens estudantes, porque o nome disso era amor. Só quem ama tem paciência. Fiquei tão feliz e então lhe perguntei: Marcelo o que fazer para agradar plenamente a Deus e não deixar a tentação fazer a gente pecar? Ele sorriu e rezou o Santo Anjo do Senhor em latim. Depois disse que bastava rezar para o Anjo da Guarda porque ele foi enviado para nos livrar das tentações e perigos. No outro dia quando cheguei ao trabalho tinha recebido sua mensagem com o Santo Anjo do Senhor em latim. Chorei emocionada. Este menino, sim porque era ainda um menino quando foi embora, deixou para as pessoas que trabalhavam na biblioteca do Ministério Público a grandeza de agradecer sempre a Deus as oportunidades, como também, os momentos difíceis, porque é com os difíceis que nos purificamos e ficamos dignos dos desígnios de Deus. As oportunidades de aprender não podem ser desperdiçadas porque isso entristece ao PAI ETERNO. Ele precisa da inteligência das almas boas para defender seus filhos das armadilhas do mal. No último dia que nos vimos, naquele abraço que lhe dei, ele solicitou que eu não desistisse de publicar minhas poesias. Tenho a poesia “Doenças & Natureza” que foi sorteada num concurso de poesias e foi publicada no livro Poetize 2013 Antologia Poética Editora VIVARA p. 82, e também outra poesia “Dos Mitos e das Hierarquias” publicada na orelha de um livro intitulado Atos e Palavras do Indivíduo à Sociedade do Autor Josef Groisman. Marcelo tinha razão quando disse que minhas poesias tinham valor como de um psicólogo. Todos que as leem acham belas e alguns ainda dizem que se encaixam nelas. Terezinha Weber 2013/10/19

Maria Zoê Bellani Lyra Espindola, 34 anos, casada, mestre em direito, analista judiciário no Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região.

 

Amiga do Marcelo. Convivência no jardim de infância, na Faculdade de Direito, no Mestrado em Direito, no Movimento de Emaús.

Conheci o Marcelo quando ainda éramos muito pequenos, aos 6 anos, e frequentávamos a escola católica Curso Elementar Menino Jesus, em Florianópolis, no ano de 1986. Já nessa época Marcelo demonstrava interesse por causas relacionadas ao bem comum, o que não é habitual em crianças desta idade. Lembro-me que por ocasião da eleição para prefeito, Marcelo opinava com convicção sobre quem seria o melhor prefeito, e dava as suas razões (e por coincidência, ou não, naquele ano, o “candidato” do Marcelo venceu as eleições – o prefeito Edison Andrino). Outro fato marcante desta época era o entusiasmo com que Marcelo cantava as músicas religiosas na escola. Sendo um colégio católico, na hora da saída íamos a fila com o livreto de canto na mão, cantando pelos corredores até chegar no pátio da escola. Uma música em especial ficou marcada em minha memória, em razão do amor com que Marcelo a entoava: Um Jovem Galileu. E sempre que a escuto, não posso deixar de me lembrar do saudoso amigo.

Após aquele ano, Marcelo mudou de escola e não o vi mais. Mas tinha deixado tantas impressões em minha alma que, cerca de 4 anos mais tarde, reconheci-o quando veraneava com sua família no Clube 12 de Agosto em Jurerê. E mais ainda, cerca de 7 anos após este último contato visual, reconheci-o(à distância) mais uma vez quando, no ano de 1995, fomos prestar vestibular por experiência para o curso de Direito, na Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC).

A partir do ano de 1997, tendo ambos ingressado no curso de Direito da UFSC, passamos a conviver diariamente na mesma turma, a 97/1.

No primeiro semestre da faculdade, Marcelo já demonstrava possuir um conhecimento e uma linguagem incomuns para um jovem da sua idade. Ficaram na memória as discussões, muitas vezes um tanto exaltadas, com o professor de Economia Política, já que o docente era partidário das teorias marxistas e Marcelo se declarava um liberal incondicional. Nesta fase, a política e a economia eram seus principais objetos de estudo e pode-se dizer que Marcelo defendia seus pontos de vista com muito rigor e até com impaciência.

Mas a paixão pelo saber e a busca de uma intensa formação intelectual foram revolucionadas pelo profundo processo de conversão interior que se iniciou no segundo semestre da faculdade, quando Marcelo aceitou o convite feito pelo saudoso Monsenhor Francisco de Sales Bianchini, então diretor espiritual do Movimento de Emaús em Florianópolis, para fazer a experiência de Deus através do Curso de Valores Humanos e Cristãos do Emaús.

Assim, o 50º Curso Masculino de Emaús, realizado no período de 28 a 31/08/1997 (no qual recebeu o sacramento do Crisma tendo por padrinho o Monsenhor Bianchini), proporcionou-lhe um encontro pessoal, único, com o Cristo Senhor, dando um sentido novo a sua existência e, consequentemente, à sua busca intelectual que passou a consubstanciar-se, sobretudo, no acesso à verdade dAquele com quem se encontrou.

De fato, no segundo semestre da faculdade Marcelo voltou diferente. Nas conversas entre as aulas passou a falar de Deus e da alegria que sentia ao ter descoberto um novo sentido para sua vida. Continuava com muito interesse e aptidão para os estudos, mas já não procurava impor aos outros as suas teses, optando por ouvir as razões alheias. Demonstrava um encantamento com a vida cristã que passava a assumir e convidava outros colegas, com entusiasmo, a realizarem a experiência de Deus no retiro de Emaús.

E assim Marcelo teve um papel importantíssimo na minha conversão. Eu seguia a religião católica por tradição familiar, tendo, inclusive, já recebido o sacramento do Crisma, mas andava afastada da vida sacramental. Era o segundo semestre de 1998, e eu andava muito triste com o rumo que estava seguindo meu namoro com um colega de nossa turma, cogitando mesmo mudar para a religião luterana para acompanhar o rapaz(que era luterano) e não perdê-lo. Foi então que ouvi Marcelo conversando com uns amigos no bar da faculdade: “Jesus Cristo é a pessoa mais importante para mim”, disse ele em alto tom. Aquelas palavras, tão profundas e convictas, entraram como uma flecha na minha alma. Como um jovem poderia dizer que Deus, a quem ele não vê, seria a pessoa mais importante da sua vida? Mas, por algum motivo, aquilo começava a fazer sentido para mim. Precisava buscar a fonte desta convicção, aquilo que o enchia de alegria e paz. Sabendo que o Marcelo havia participado do curso de Emaús, dirigi-me a ele e pedi que me inscrevesse, me apresentasse como sua afilhada. Confesso que ele até se surpreendeu com o meu pedido, pois até então nunca havíamos falado abertamente de Deus. Mas, enfim, a presença de Deus que irradiava no Marcelo fez com que eu me sentisse atraída para o encontro de Emaús, que seria para mim, como para tantos jovens, um marco na caminhada cristã, o princípio do retorno para a casa do Pai.

E assim, tanto no Movimento de Emaús como na faculdade, pude ser testemunha do crescimento humano e espiritual do Marcelo.

Como estudante, aplicava-se ao máximo, preparava com propriedade seus trabalhos e apresentações, era assíduo e pontual, permanecendo até o final das aulas mais cansativas…e das matérias consideradas menos importantes. Durante alguns semestres, antes de ingressar no estágio do Ministério Público Federal, integrou o PET(Programa Especial de Treinamento), um grupo de estudos avançados.

Era extremamente amável, bondoso e cordial com os colegas, oferecendo-se todos os dias para dar carona para um grupo de amigos que moravam perto da casa da sua avó(para onde ele ia após a aula) e que não possuíam carro, dentre os quais eu me incluía.

No Movimento de Emaús, foi extremamente assíduo nas reuniões do grupo de jovens no qual participava, o grupo São Paulo, tendo sido, inclusive, seu presidente e por longa data, até quando precisou afastar-se por problemas de saúde. Era, também, palestrante assíduo nos cursos, nas reuniões de grupo e Escola Missionária do Movimento. Marcelo foi se destacando pelo seu imenso saber e seu imenso amor a Deus, e sua fala estava sempre repleta de entusiasmo e convicção.

Marcelinho, como era carinhosamente chamado pelos amigos, costumava saudar a todos desejando “Paz e Bem”. Estudioso profundo e autodidata da doutrina católica mantinha uma postura firme face às propostas ou ensinamentos contrários jamais transigindo com o erro em questões de fé e moral, esclarecendo as fontes bíblicas e magisteriais que revelavam o ensinamento correto, ao mesmo tempo em que o fazia com mansidão e humildade de coração.

Marcelo utilizava um vocabulário rico e extenso, não falava gírias vulgares, e sua postura e feição eram amáveis, acolhedoras. Um perfeito cavalheiro.

Apesar disso, e do seu porte físico esguio(não se pode dizer que era um rapaz atlético), não hesitou em socorrer um pai de família que estava prestes a ser surrado em razão de uma briga no trânsito. Isso ocorreu na ocasião em que Marcelo e eu nos dirigíamos para o CAP(Centro Arquidiocesano de Pastoral) para levar uma colega de turma para fazer a entrevista para o Curso feminino de Emaús. Estávamos em frente ao Largo São Sebastião, quando dois carros quase colidiram na esquina da Avenida Gama D´Eça com a Rua Bocaiúva. Em um dos carros estava uma família de quatro pessoas, pai, mãe e duas crianças, e no outro carro apenas um homem. Os dois homens saíram dos carros e aquele que estava sozinho partiu para cima do pai de família para espancá-lo. Para minha surpresa e de minha amiga, Marcelo correu em disparada na direção do homem e agarrou-o por trás, imobilizando seus braços acima do pescoço, enquanto a mãe de família, chorando, puxava o marido para dentro do carro para irem embora. Marcelo evitou a briga, conversou com o rapaz que, em seguida entrou no carro e foi embora mais calmo.

De fato, Marcelo não se preocupou em levar uns safanões, não ficou indiferente, intervindo com coragem e caridade para evitar um desfecho trágico.

Seu amor à Igreja foi intensificando-se. Esse amor levou-o a defender com heroísmo a Santa Igreja perante os colegas universitários e professores, todas as vezes em que era injustamente atacada.

Em uma ocasião, em especial, o zelo pela Igreja levou-o a uma discussão de mais de uma hora com o professor de Direito Tributário, na nona fase do curso. O professor manifestava que, na Idade Média, a Igreja Católica, por seu clero, utilizava o trabalho dos servos, um regime próximo da escravidão e que a Igreja levou milhares de pessoas aos Tribunais da Inquisição. Marcelo não se furtou em questionar o professor e, com muito domínio de conteúdo e firmeza tentou demonstrar que os servos não eram escravos e que a Igreja Católica não teria utilizado e explorado o regime escravocrata, bem como que eram as autoridades civis que condenavam as pessoas na Inquisição, e não a Igreja Católica. Marcelo não baixou a guarda e não se intimidou com a posição de superioridade do professor, ainda que temesse que esta discussão refletisse nas suas notas. Na aula seguinte ambos conversaram sobre o assunto e assumiram humildemente a postura de se desculparem, ainda que cada um permanecesse com as suas convicções. Mantiveram, após o episódio, uma convivência cordial, de respeito mútuo. O professor esteve presente no enterro do Marcelo.

Terminada a faculdade, tive nova oportunidade de conviver diariamente com Marcelo no Mestrado em Direito, testemunhando sua aplicação nos estudos e seu heroísmo na defesa da Santa Igreja Católica. Na medida em que buscava a fundamentação para as questões morais levantadas na filosofia de São Tomás de D´Aquino, alguns colegas diziam que Marcelo seria a “versão atual” daquele santo. Concluiu o curso em exíguo espaço de tempo, obtendo a nota máxima.

Já no final da faculdade Marcelo conheceu o Opus Dei, e foi quem iniciou a divulgação da espiritualidade da Obra para os jovens do Movimento de Emaús, dentre os quais eu me incluía(atualmente sou cooperadora da Obra). Marcelo se apaixonou pela proposta de santidade de São Josemaría Escrivá, um caminho de virtudes humanas e sobrenaturais.

O ideal de santificação das atividades temporais cotidianas, sobretudo do trabalho profissional – preconizado por São Josemaria Escrivá – foi vivido intensamente por Marcelo na medida em que soube transformar as realidades humanas da família, da profissão, do estudo, do lazer, da amizade e do descanso, em locais privilegiados de encontro com Deus.

No desejo de conduzir e oferecer o trabalho profissional para Deus, Marcelo avançou na formação intelectual buscando sempre aperfeiçoar o conhecimento adquirido, não para sua vanglória, mas para poder melhor servir.

Nos anos de 2003/2004, atuou como professor substituto da UFSC nos cursos de Direito e Economia. Em 2004, ainda, foi contratado pelo curso de Direito do Instituto de Ensino Superior da Grande Florianópolis (IES) e Faculdade de Santa Catarina (FASC).

Marcelo marcou profundamente as pessoas que com ele conviveram, não somente pelo seu conhecimento incomum, mas por não se importar em “gastar” tempo com os familiares, colegas de trabalho, alunos e amigos. Assim, além da sua completa dedicação ao trabalho profissional e religioso, são características marcantes do seu ser, a palavra acolhedora, o sorriso encantador, o companheirismo, a disposição em ajudar, a riqueza de sentimentos em seu coração, sem contar a fé viva e inabalável, o intenso amor a Deus.

Enfrentou uma dura provação a partir de setembro de 2004, quando, subitamente, perdeu os movimentos das pernas necessitando ser internado, com urgência. Nesta ocasião, recebeu o diagnóstico de linfoma linfoblástico (Linfoma não-Hodgkin), um tipo de câncer que se origina no sistema linfático, disseminando tumores que se desenvolvem, principalmente, no tórax (região denominada mediastino).

Necessitando afastar-se do trabalho como docente, indicou-me para substituí-lo no IES e na FASC. Assumi suas turmas de Direito Civil no segundo semestre de 2004, oportunidade em que pude verificar o imenso prestígio e admiração dos alunos e demais profissionais da casa para com sua pessoa.

Com o auxílio incansável da família e dos amigos, com a confiança filial na Providência Divina, enfrentou com surpreendente e contagiante serenidade o longo processo de luta pela vida, que durou cerca de 4 anos, realizando muitos exames e coletas de sangue, quimioterapia e radioterapia, experimentando medicamentos e tratamentos, submetendo-se a prolongadas internações e até a um auto transplante de medula óssea, em novembro de 2007, quando a doença já havia atingido a corrente sanguínea, sendo diagnosticada a leucemia.

De fato, aqueles que o visitavam no hospital saíam confortados e impressionados com sua paz e seu otimismo. Já nos primeiros dias que se seguiram à primeira internação no Hospital Celso Ramos, foi solicitado que cessassem as visitas, tamanho o fluxo de gente que o vinha visitar.

Marcelo buscava a perfeição nos seus afazeres, por amor, porque sabia que isto era agradável a Deus. Conseguiu, em meio a suas atividades profissionais, à vida social e à dor, manter a alma contemplativa, a presença de Deus, através do cumprimento heroico de um plano de vida que comportava, dentre outros compromissos, a diária recepção da Eucaristia, a oração do terço e a meditação, bem como a busca periódica da direção espiritual e da confissão.

Tendo sido uma testemunha muito particular da vida do Marcelo, compartilhando momentos da sua infância, da sua juventude na faculdade de Direito, no mestrado, no Movimento de Emaús e no Opus Dei, consequentemente testemunhando sua conversão e o enfrentamento da enfermidade, bem como ante a vivência cristã sacramental que o Senhor me permite desenvolver, creio firmemente na santidade de vida deste amigo, a ponto de, mesmo sendo casada e mãe de três filhos, com atividade profissional, disponibilize tempo e esforços para esta causa, trabalhando na busca de elementos que possibilitem a formalização do processo de beatificação.

Timbó, 27 de setembro de 2013.

Maria Zoê Bellani Lyra Espindola

Meu nome é Klaus da Silva Raupp. Nasci em Florianópolis (Santa Catarina, Brasil), em 6/7/1976. Passei a maior parte desses trinta e sete anos na minha cidade natal. As exceções se deram nos anos de 1978 a 1983, quando residimos em outras duas cidades catarinenses (em função do trabalho de meu pai), e de 2012 até agora, quando eu, esposa e filha passamos a residir no exterior (Estados Unidos). Completaremos dez anos de matrimônio no próximo dia 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis. Profissionalmente, sou advogado e também professor na área teológica junto à PUCPR e ao ITESC (hoje FACASC), atualmente licenciado por conta da residência no exterior.   Desde a tenra infância, recebi da minha família a formação católica, voltada tanto à vida prática, como à vida litúrgica. Até hoje, recordo bem de sempre ter sido orientado de acordo com os princípios cristãos, bem como de termos participado da vida comunitária eclesial e da missa dominical nas paróquias por onde passamos. E, ao voltar para Florianópolis, eu ainda na escola primária, passei também a estudar em escola católica, onde também participei, desde a adolescência e por bastante tempo, de grupos de pastoral juvenil (segundo o carisma marista). Mais adiante, depois de concluída a Faculdade de Direito (UFSC) e já atuando como advogado, tive a oportunidade de participar do Curso de Valores Humanos e Cristãos do Movimento de Emaús, onde, então, tive a graça de conhecer o Marcelo Henrique Câmara, vindo em seguida a participar de dois grupos do mesmo Movimento, um deles o grupo de que participava o próprio Marcelo, e a convite dele. A partir do Emaús, e inclusive com bastante influência das muitas conversas que mantinha com o Marcelo a respeito da fé católica, motivei-me a compreender melhor as razões da mesma fé (I Pe 3, 15), passando a cursar as disciplinas de teologia sistemática no curso de graduação em teologia do ITESC (hoje FACASC), e depois cursando mestrado em teologia sistemática na PUCRS (universidade pontifícia), tendo prestado o exame De Universa Theologia em 5/12/2007, e tendo defendido dissertação em 13/5/2008. Nesta última, concentrei-me na antropologia teológica, pesquisando e refletindo sobre o ser humano na pós e hipermodernidade à luz da teologia cristã, principalmente a partir do magistério conciliar da Gaudium et Spes (e com destaque para o texto do número 22 da referida Constituição Pastoral, segundo o qual “Cristo, novo Homem, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime”). Em verdade, faço os registros deste parágrafo no sentido de me permitir afirmar, aparentemente com mais propriedade, que Deus não só me concedeu a graça de fazer parte da Sua Igreja e de nela conhecer a figura ímpar do Marcelo, como também por graça me proporcionou, através do estudo da teologia (e em especial sobre o ser humano), um entendimento bastante claro, creio eu, a respeito da santidade do Marcelo. Incluí-o na dedicacatória de minha dissertação de mestrado, a propósito, com as seguintes palavras: “Dedico este trabalho ao saudoso amigo Marcelo Henrique Câmara, cujo caminho de santidade tive a graça de acompanhar de perto”. E, certo dia, ao apresentar o conteúdo da mesma à comunidade do Movimento de Emaús, no que chamamos de Escola Missionária, tive a alegria de mostrar o quão claramente o Marcelo se encaixava perfeitamente, como exemplo concreto, em todos os critérios da santidade cristã (objeto de reflexão na dissertação), a dizer, nas dimensões da plena realização humana em Jesus Cristo (tema pesquisado por ocasião do referido trabalho acadêmico). E essa apresentação, noque tange à relação do tema da dissertação com a vida do de santidade do Marcelo, foi feita com a interessante colaboração de pessoas próximas a ele, do que tenho o registro. Enfim, quero com essas palavras apenas enfatizar minha ainda maior convicção, a partir da reflexão teológica que tive a oportunidade de fazer em âmbito acadêmico, daquilo que meus olhos viram acerca da santa vida vivida pelo Marcelo. Como dito, pois, conheci-o no Movimento de Emaús. Mas volto mais adiante a esse detalhe. Quero iniciar esse relato abordando fatos que julgo significativos, sob o prisma do reconhecimento de sua santidade, e que estão situados justamente no início e no fim do calvário que viveu em face dos dois diferentes tipos de câncer que, em sequência, acometeram-no. Em 21/9/2004, uma terça-feira, recebi atônito a notícia, por parte da Sra. Ernesta Rabello, então a esposa do Casal Presidente do Movimento de Emaús, de que o meu amigo mais dileto e padrinho de matrimônio Marcelo estava com um câncer no sistema linfático (que em seguida se confirmou como um linfoma de Hodgkin, e dois anos depois evoluiu para uma leucemia). Como amigo muito próximo, meu chão caiu, assim como o de todos que com ele conviviam, especialmente por se tratar de um jovem com apenas 26 anos, virtuoso como pouquíssimos, e de um futuro promissor em todas as esferas da vida. Mas, ali mesmo, junto a ele, estavam só começando as lições de vida que receberíamos deste santo jovem. Marcelo era fiel de Missa diária e, com a abrupta internação (naquele momento, no Hospital Governador Celso Ramos), perdeu a oportunidade de participar diariamente da atualização do santo sacrifício de Cristo no altar. Assim sendo, eu não pensei duas vezes, uma vez que possuia, na época, a provisão de Ministro da Sagrada Comunhão: passei a levar-lhe a comunhão diariamente, o que fiz por quase seis meses, até quando condições clínicas o impediram de receber visitas diárias. Mas também deixo para mais adiante o relato sobre esses momentos a mim muito caros e saudosos de sua comunhão diária. Como relato inicial, gostaria de registrar as palavras dele antes da Missa que celebramos no domingo seguinte ao de sua internação (no dia 26/9/2004, portanto), em seu próprio quarto de hospital. Tendo sido um desejo manifesto dele, não medimos esforços para tentar realizá-lo, e assim o fizemos. Preparamos todas as alfaias e Monsenhor Francisco de Sales Bianchini presidiu a celebração inusitada, num quarto de hospital, sendo o altar a mesinha das refeições. Quando não foi nossa surpresa que, antes que a Missa se iniciasse, Marcelo pediu a palavra e disse, literalmente: “meus queridos, quero lhes dizer que esta mesinha – a das refeições – não tem a noção de que receberá em seguida a maior dignidade que lhe é possível, e dizer também que desejo associar o meu sacrifício ao de Cristo, que se renovará neste altar…”. Uma compreensão e uma devoção acerca do mistério eucarístico seguramente incomuns em jovens de sua idade. E, de fato, tal associação aconteceu. Marcelo nos deixou em 20/3/2008, numa quinta-feira santa, dia em que celebramos a instituição da Eucaristia que ele tanto amou e viveu (sua vida foi uma verdadeira ação de graças), e tendo sido sepultado na sexta-feira santa da paixão de morte de Nosso Senhor. Particularmente, não consigo entender todos esses fatos, somados à lucidez de sua fé e a compreensão que ele nutria acerca do mistério eucarístico, como frutos de uma mera coincidência. Mais que isso, a liturgia do dia (27/3/2008) da Missa de Sétimo Dia celebrada especialmente em sua memória previa originalmente como leitura do Evangelho o trecho de Lc 24, 13-35, ou seja, o da aparição de Cristo Ressuscitado aos discípulos de Emaús, inspiração principal do Curso e do Movimento que, segundo o próprio Marcelo, proporcionaram a ele a sua conversão definitiva à plena vivência da fé católica. Ele mesmo contava, muitas vezes, e inclusive em palestra no Curso sobre a Igreja, que, quando rezava o Credo anteriormente ao Curso, omitia a parte “na Santa Igreja Católica”, ao passo que depois passou a entender que foi por ela que teve conhecimento da plena verdade sobre o ser humano e sua salvação em Jesus Cristo. Quanto à Missa de Sétimo Dia, é importante acessar o conteúdo da homilia proferida pelo Pe. Flavio, bem como o texto que tive a oportunidade de ler à comunidade presente como meditação após a comunhão, uma vez que destacam muitas das virtudes vividas pelo Marcelo. Na celebração de exéquias, na dita sexta-feira santa, numa das capelas do Cemitério São Francisco de Assis, no bairro do Itacorubi, em Florianópolis, Monsenhor Francisco de Sales Bianchini, que levou o Marcelo a participar do Curso de Emaús, disse que não estava usando estola roxa, própria do luto, mas sim branca, porque queria simbolizar a festa no céu pela ressurreição do Marcelo. E afirmou, literalmente: “não conheci ninguém com seu grau de santidade”. São ambas afirmações que muitos que ali estavam podem testemunhar. Da mesma forma, é significativo o fato de que o Monsenhor Bianchini era completamente avesso a celebrações de exéquias, mas quis pessoalmente presidir as do Marcelo, tendo sido a única que realizou entre o dia da de sua irmã (isso em 5/2/2004) e o dia em que ele mesmo nos deixou (26/10/2010). A propósito, eu também afirmo o mesmo: não conheci ninguém com o seu grau de santidade (e creio que não mais conhecerei, ainda que isso não devesse afirmar). Voltando, pois, ao item que havia deixado para mais adiante (sobre como o conheci), isso se deu num dia de semana à tarde, por volta de abril de 2000. Eu saí de meu escritório, que na época tinha sede em um edifício muito próximo ao da sede do Movimento de Emaús, justamente para buscar mais informações sobre o tal Curso de Valores Humanos e Cristãos que o referido Movimento realizava periodicamente. Ao chegar no conhecido “CAP” (Centro Arquidiocesano de Pastoral), no Largo São Sebastião (em Florianópolis, claro), já na porta de entrada deparei-me com um jovem bondoso já no olhar, e de uma gentileza de trato com estranhos totalmente incomum. Com toda a sinceridade, eu não acreditei que aquele comportamento era espontâneo / natural, quando era. Eu sinceramente julguei (e mal) que se tratava de gentileza forçada, quando em verdade era expressão de seu jeito puro e bom de ser para com todos. Tanto que era conhecido como “Marcelinho Paz e Bem”, uma vez que franciscanamente desejava a todos essa saudação do santo de Assis. No mencionado curso, do qual participei de 11 a 14 de maio de 2000, não menos afortunado eu fui. Marcelo estava participando do curso como jovem monitor e, para minha ainda maior sorte, colaborando no meu grupo de discussão (um grupo de reuniões para aprofundamento dos temas após alguns blocos de palestras). As respostas às dúvidas que os jovens tinham acerca dos temas das palestras do curso eram praticamente todas dadas por ele, com o silêncio de respeito e admiração dos monitores adultos do mesmo grupo. Sua convicção e sua caridade ao abordar todos os temas relacionados à fé católica eram notáveis, além de ser perceptível que vinham de alguém que vivia tais verdades em seu cotidiano, o que depois vim a testemunhar claramente, e o que muitos estão aptos a testemunhar. Tudo isso fez questionar o meu próprio modo de agir como cristão, vindo de família católica e tendo estudado em escola católica e participado de grupos de pastoral juvenil, mas distante que estava da vida sacramental e da vivência de muitos valores fundamentais a um verdadeiro fiel. Posso afirmar, portanto, que, já em vida, Marcelo intercedeu pela conversão plena de muitos, como a minha própria. Meu sentimento de pertença à Igreja, inclusive, passou a ser totalmente outro após o contato com ele, especialmente ao ouvi-lo naquela que é a última palestra do curso, “Consciência e Missão de Igreja” (guardo comigo a sua palestra até hoje, assim como alguns outros textos seus). Ao vê-lo e ouvi-lo falar, era impossível piscar os olhos, e pensei comigo, tal como alguém disse a respeito do Mestre naquele tempo, “este fala como quem tem autoridade”, a dizer, ele fala com a autoridade de quem vive o que prega, fato que se confirmou ao conhecê-lo cada vez mais, ao longo de quase oito anos. Após sua palestra, portanto, e já tendo naquele momento recebido dele mesmo o convite para participar do Movimento de Emaús, através do Grupo São Paulo (do qual ele participava e era o Presidente), eu não tive mais dúvidas quanto a aceitar tal convite, tendo em seguida dedicado uma parte significativa de meu tempo, nos anos que se seguiram, para o Movimento de Emaús, a Paróquia Santíssima Trindade e a teologia (tudo fruto dessa “volta” à Igreja que teve a fundamental contribuição das palavras e do exemplo do Marcelo). No convívio do Grupo São Paulo, então, construímos uma amizade como nenhuma outra eu havia construído, e da qual sinto realmente muita falta, lembrando-me dele exatamente todos os dias, quanto às coisas que diria acerca de cada situação concreta da vida, quanto à docilidade de alma para com as pessoas (indistintamente, mesmo), quanto às reflexões sempre muito profundas e pertinentes a respeito de temas complexos, quanto ao modo claro e concreto de conduzir sua existência à luz da fé que nutria e vivia como ninguém eu vi nutrir e viver. Tão logo entrei para o Movimento de Emaús e o Grupo São Paulo, inclusive, Marcelo e eu convidamos Monsenhor Bianchini para nos dar aulas de latim, sendo que íamos semanalmente à sua casa para esse intento. Em verdade, íamos até lá para com ele conviver e dele aprender as muitas de suas histórias e os muitos de seus ensinamentos, com um mais que pertinente “pretexto” das aulas de latim, ainda que ouvíamos dele algumas declinações da primeira flor do Lácio. Voltando ao Grupo São Paulo, Marcelo era sempre a palavra final de cada reunião semanal. Sempre teve o respeito e a admiração de todos (e isso não só no Grupo São Paulo ou no Movimento de Emaús, mas em todos os ambientes que frequentou, o que por certo se confirmará em depoimentos vindos de diferentes contextos), como consequência natural de uma vida uma plenamente virtuosa, somada a uma inteligência privilegiada e um modo irretocável de expressar o que acreditava e/ou pensava. Marcelo ela piedoso (na plena acepção da palavra piedade), de uma pureza perceptível nos olhos e nas atitudes (sim, tinha a feição / a postura de um santo – dois vídeos que dele tenho demonstram-no bem, assim como muitas fotos), fiel em tudo (sem escolhas), racional nas compreensões e nos argumentos, intelectualmente honesto, amante incondicional da verdade, crítico firme e sereno da mediocridade, sensível a tudo e a todos, gentil ao extremo, manso nas admoestações que porventura fazia, enfim, um jovem ser humano de um equilíbrio incomum em suas palavras e ações, e tudo isso que ele mesmo atribuía à sua busca por viver na graça divina. Em tempo, simples e humilde ao extremo, e nunca cioso das tantas virtudes com as quais Deus lhe presenteou e nele fez refletir aos olhos de todos que com ele conviveram ou que simplesmente por ele passaram. Eu diria que o Marcelo foi e é uma unanimidade entre absolutamente todas as pessoas que puderam conhecê-lo, sendo tranquilamente possível afirmar que não se encontrará quem tenha algo negativo a dizer a seu respeito. Repito, não se encontrará alguém que lhe atribua algum mal moral, pois não houve o que desabonasse sua vida efetivamente santa aos olhos de Deus e dos homens. Hoje, diante da saudade do amigo, meu consolo em parte se dá em razão de eu efetivamente contar com ele, com plena convicção a esse respeito, como um intercessor junto de Deus, especialmente no que diz respeito aos discernimentos de vida que eu constantemente procuro ter. Eu efetivamente presto uma devoção particular ao Marcelo, do que muitos sabem e também podem testemunhar. E, especialmente, no memento pelos falecidos em cada Santa Missa de que participo. Marcelo foi nosso padrinho de matrimônio, e sua sintonia era tão grande para com os sentimentos das pessoas que, mesmo sem saber qual leitura do Evangelho seria proclamada na celebração, entregou-nos dias antes um cartão (o qual temos guardado, certamente) em que nos dirigia palavras carinhosas e votos de um sacramento frutífero baseando-se justamente na mesma leitura. Uma vez casados, fomos convidados a participar de um departamento do Movimento de Emaús chamado Escola de Dirigentes, que tinha a incumbência de realizar reuniões preparatórias junto aos monitores jovens e adultos que serviriam nos cursos de Emaús. Convidamos, então, o Marcelo, para colaborar com o Departamento, sendo que ele montou um texto (também guardado) sobre as virtudes necessárias àquele que serve em Emaús que reflete muito o modo como via pessoa humana e o cristão (e em especial aquele que serve) diante de Deus, bem como o modo como ele mesmo conduzia a sua vida (por aquelas virtudes). Até o momento em que adoeceu, ele mesmo realizava esse momento da preparação, sempre encantando as pessoas com as tantas características já citadas anteriormente. Para se ter uma ideia, ele iniciava o texto com uma epígrafe de citação a uma canção brasileira, aludindo à necessidade de que o cristão deveria ter com Deus, antes de tudo, uma relação de enamoramento. E era evidente que Marcelo era um enamorado de Deus. A propósito, sobre uma namorada que ele teve, diante de seu jeito de ser e de sua compreensão do namoro cristão (incluindo a firme convicção da castidade pré-matrimonial – e neste quesito haverá também muitos a testemunhar que Marcelo seguramente faleceu tendo respeitado por toda a vida essa castidade, e, o que é ainda mais belo, numa compreensão de pureza que vai muito além da sexualidade): boa moça, mas sem a mesma convicção do Marcelo em relação a valores que a ele sempre foram caros e inalienáveis, dizia ela que aos poucos ia tentar mudá-lo, o que gerava inclusive um sentimento de jocosidade junto aos amigos comuns, pois todos sabiam que Marcelo jamais abriria mão do que era e do que sempre almejava ser, na convicção tranquila e serena de levar uma vida santa, o que redundou no fato de que foi um namoro que durou poucas semanas. Quando Marcelo adoeceu, como dito, foi um choque para todos. Um jovem de 26 anos, agraciado por uma fé muito grande e centrada na Pessoa de Jesus Cristo (no seguimento verdadeiro de seus ensinamentos e de sua prática), e cheio de oportunidades na vida profissional que se iniciava (já era docente, sendo que amava o magistério, e preparava-se para a carreira de promotor de justiça), de uma para outra tem um câncer em seu sistema linfático. Mas, incrivelmente à maioria das pessoas, porém crivelmente a ele mesmo, sua fé ficou manifestamente expressada por sua serenidade diante dos fatos, assim como pela resignação no sofrimento, todavia não sem uma luta intensa pela vida. Isso sempre me impressionou, portanto, mesmo já sendo seu amigo próximo, e tendo convivido com ele diariamente nos seis primeiros meses da doença, enquanto ainda podia receber visitas nesse ritmo. Marcelo tinha o comportamento ideal, isto é, do homem fiel e santo. Sua fé não fez dele alguém que inocentemente achava que sua doença era vontade direta de Deus, o que seria loucura, mas que aceitava com plena paciência o seu estado de natureza debilitada, ao mesmo tempo em que fazia de tudo para alcançar os caminhos da cura, inclusive através da humana crença na solidariedade das pessoas (vide entrevista que deu à Rede RBS no dia de seu 28º e último aniversário de nascimento). Nesse sentido, a mobilização que houve na cidade e no seu principal hemocentro é algo digno de registro, o que eu mesmo considero um milagre (uma mirabilia Dei) por sua intercessão ainda em vida. Além das orações por ele, que se tornaram comuns na rotina de muitos, as “peregrinações” que ao HEMOSC se dirigiram, confirmáveis pelos seus funcionários, demonstraram cabalmente o quão querido era ele por todos que o conheciam (e o desejo de mantê-lo vivo, por suposto), assim como o bem que através dele acabou sendo feito a tantos outros que precisavam de doações de sangue, plaquetas ou mesmo medula óssea. É fato que o cadastro de doadores do referido hemocentro aumentou significativamente após a doença do Marcelo. No outro item que anteriormente citei en passant e deixei para adiante, sua comunhão diária ho hospital nos seis meses iniciais da doença (decorrência de sua vida prévia de Missa diária) efetivamente merecem destaque na análise de sua santidade, assim como o relato da Missa celebrada em seu quarto de hospital no primeiro domingo após a notícia da doença. Antes, a alegria que demonstrava por poder receber o Cristo sacramentado era indizível. Aguardava diariamente por aquele momento, e regozijava-se e sorria intensamente por poder desfrutar da presença real de seu Senhor e Deus. Em muitas vezesm dizia-me, literalmente, antes de iniciarmos o rito da sagrada comunhão fora da Missa: “amigo, tu me permites adorar um pouquinho?”. E, a partir do ritual romano da sagrada comunhão e culto do mistério eucarístico fora da missa”, fazíamos a constante leitura dos conhecidos hinos eucarísticos de São Tomás de Aquino, para deleite de alma do Marcelo. Repito, ele sempre insistia, e sempre de forma muito polida e reservada, que o fizéssemos (adorar e ler algum hino antes do rito da comunhão em si). Sempre quis eu ter a fé e o amor eucarísticos que Marcelo naturalmente tinha e transmitia. Uma piedade eucarística que, com toda a minha sinceridade, nunca vi sequer em ministros ordenados que eu tenha conhecido. Hoje, rogo a Deus, por sua intercessão, para que a aumente em mim. Como que a ouvir as mesmas palavras dele, que ainda ecoam em meus ouvidos, mas de um modo levemente diferente: “amigo, tu te permites adorar um pouquinho?”. Sobre a mesma Eucarista, tão amada e vivida por ele, e da qual ele mesmo foi ministro extraordinário, na Paróquia Sagrado Coração de Jesus (bairro dos Ingleses, em Florianópolis – onde, a propósito, uma colega ministra, inclusive, dirigiu-se à família, após seu falecimento, para pedir que a permitissem ficar com seu jaleco, alegando que não tirassem dela essa lembrança do Marcelo), pôde ele testemunhar, e novamente de forma muito reservada e serena (sem em nenhum momento fazer menção à sua doença), toda a sua piedade ao Santíssimo Sacramento em palestra no mesmo curso de Emaús. Estando eu no curso, como reitor do mesmo, e tendo a visão completa da sala de palestras, pude reparar os olhares fixos dos jovens naquele testemunho eucarístico que, para eles, vinha como que diretamente do céu. E me impressionou a quantidade de referências à palestra dele no momento noturno de registro do que mais os havia feito crescer naquele dia, pois é o dia em que o Monsenhor Bianchini, palestrante que foi dos mais conhecidos na história da Igreja de Florianópolis, falava sobre a volta e o sacramento da reconciliação, bem como aos jovens era oportunizado esse momento. Mas, a palestra sobre a Eucaristia, creio que pela primeira vez na história do Movimento de Emaús, superou em referências os demais momentos daquele dia, quer fossem, dentre outros, a conhecida palestra do Monsenhor Bianchini e a própria oportunidade da volta e da reconciliacão em si, sempre muito significativa no curso. Mais uma vez, pois, lembrei-me daquilo que me ocorreu quando o vi falar (palestrando) pela primeira vez, sobre a Igreja, no sentido de que falava como quem tinha autoridade. A sua vocação ao magistério era evidente, e a praticava com muito amor, o que muitos de seus alunos haverão de testemunhar, mas mesmo aqueles que, como eu, inclusive por também atuar na área jurídica, com ele mantinha conversas sobre temas afetos à lei e à justiça. Antes, a defesa de sua dissertação de mestrado (no Direito), na qual estive presente, foi no mínimo brilhante, e recebedora, além da nota máxima, de todos os reconcimentos e louvores possíveis naquele momento acadêmico. Como um idealista que era, sempre se interessava pelos destinos do país e do mundo, e tinha suas convicções, ao mesmo tempo em que respeitava verdadeiramente o direito dos demais de manifestarem opiniões divergentes. Numa conversa com ele, as pessoas percebiam que nem mesmo as divergências ficavam evidenciadas, pois ele mesmo as acolhia com brandura, tendo sempre antes o valor na pessoa. Nesse mesmo idealismo, guiou-se à carreira de promotor de justiça e, em meio às internações (e, portanto, sem as condições ideais de preparo para as provas de ingresso), foi aprovado no concurso que realizou em quinto lugar, tendo feito questão de não concorrer pela vaga especial de fisicamente debilitado, mesmo que tivesse direito, pois não julgava ético fazê-lo uma vez estando em pleno gozo de suas condições intelectuais. Na carreira, algumas também são as histórias de alguém com um olhar diferenciado (plenamente cristão) sobre sua atividade profissional. Numa ocasião em que atuou pela condenação legal de um réu (parte de seu ofício), após encerrada a sessão, fez questão de reservadamente ir ao encontro do mesmo para aconselhá-lo a não repetir tais atos que motivaram a ação penal, e a passar a se focar na prática do bem. Como dito anteriormente, mesmo tendo a resignação dos santos, em momento nenhum deixou de lutar pela vida. Dizia que tinha pressa, e que ainda tinha muito a fazer em vida, ao mesmo tempo em que sempre aceitou com muita serenidade a sua condição. Era ele quem lidava com os médicos, fazendo questão de informar-se totalmente sobre seu quadro, seus protocolos, suas alternativas e assim por diante. E, junto aos mais próximos (especialmente à família), era justamente quem os consolava. Eu mesmo ouvi-o dizendo à sua mãe que “do outro lado” a vida era muito melhor e plena, e que portanto ela não se preocupasse, que ele estaria muito bem caso padecesse por conta da leucemia. E dizia para que ela não esquecesse do “jardim”, sendo que se referia às flores de seu túmulo (com ela e outros mais próximos, usava linguagem indireta, mas dizia a mim diretamente até demonstrando a preocupação com a possível pouca fé dos que o amavam, o que lhes acarretaria sofrimento, e com que então, e aí sim, ele mais sofria; ou seja, mesmo sendo acometido de um câncer grave, sofria pelos seus). Nutria, pois, uma clara convicção sobre a ressurreição e a vida eterna, sendo que nele nunca se viu aquelas conhecidas fases psicológicas de choque/negação, ira/rancor (em relação a Deus, especialmente), negociação e depressão, do que posso falar com tranquilidade, tendo visitado-o tantas vezes e com ele conversado muitas vezes por muito tempo, antes e depois de adoecido. E, não obstante sua fé na ressurreição e na vida eterna, era tão humilde que costumava dizer sempre, de forma até graciosa, que desejava a última vaguinha do purgatório, uma vez que teria a certeza de poder contemplar o céu, apenas precisando da graça de Deus para estar plenamente puro para o encontro glorioso. É de lá que tenho a convicção de que Marcelo intercede por nós, junto de Deus, na comunhão dos santos. Klaus da Silva Raupp Em Sunrise (Flórida, EUA), aos 20 de setembro de 2013, cinco anos e meio depois de seu falecimento.

O Marcelo foi um presente que Deus me deu. Filho maravilhoso, o maior elogio que eu posso dar é dizer que foi um filho que nunca me deu uma tristeza, uma contrariedade, uma preocupação, a não ser, é claro, a época da doença dele, que era uma preocupação diária e uma tristeza imensa.

O Marcelo foi uma criança tranquila, foi pra creche cedo, foi bem novinho porque eu trabalhava o dia todo. Fazia as peraltices, coisa de criança.

 

Na época do primário foi tranquilo, sempre gostou de estudar.

Ele mudou muito mesmo a partir da minha separação. De menino, passou a tomar uma postura de adulto. A impressão que dava era que ele queria tomar o lugar do pai, queria ser o responsável por tudo. Quando eu chegava do serviço ele sentava e perguntava pra mim como tinha sido o meu dia e se eu precisava de alguma coisa, se a família precisava de alguma coisa.

Amigo, companheiro, confidente. Eu aprendi muito com o Marcelo, pois era uma pessoa que guardava segredo como ninguém. Poderia contar o que fosse pra ele e se pedisse segredo ele não falaria nem sob tortura.

Nunca precisei brigar com o Marcelo.

Chegou uma época na doença dele que a gente se entendia pelos olhos. Eu achava isso tão legal, porque aconteciam algumas coisas ele me olhava e eu o olhava e eu sabia o que ele estava me dizendo e ele sabia o que eu queria dizer. Nessa época a gente ficou mais unido do que já era porque a gente se entendia com o olhar. Era impressionante.

Um dia eu tava sentada, pensando, muito triste com medo de perdê-lo e ele olhou pra mim e disse: “O que é mãe? O que estás pensando?” e eu disse que não era nada, coisas que precisava fazer em Florianópolis quando voltasse para casa, aí ele disse: “Mãe, imagina, se aqui já é bom, como não será do outro lado? Eu tenho certeza de que é muito melhor”.

Nunca se queixou de NADA. Muito pelo contrário. Quando ele me via pra baixo, triste, ele tentava me levantar, conversar sobre outras coisas, pedia para eu ler para ele. Mas nunca se queixou de coisa alguma.

O dia que o médico disse pra ele, “Marcelo, você está com leucemia”, ele respondeu: “Então, qual é o procedimento? O que vamos fazer? Daqui para frente, como vai ser o tratamento?”

Ele não queria que as pessoas soubessem da leucemia, para não preocupar mais ninguém. Eu queria ressaltar a força dele, pois ele recebeu a má notícia e não se abalou.

Ele encarou a doença com muita resignação, muita fé, muita esperança, muita vontade de viver e de ficar bom. Uma vez, ele pediu pro médico assistente apressar a sua cura porque queria ficar bom logo, pois tinha muita pressa.

Ele tinha uma expressão que eu achava engraçada: “não vou gastar tempo, perder tempo com isto ou aquilo”. Tinha prioridades.

Sinceramente, eu nunca vi ninguém com tanta fé. Nunca vi ninguém acreditar tanto, entender tanto. Era uma fé inabalável. Nunca vi o Marcelo ter dúvidas.

E era uma fé vivida no cotidiano. Às vezes eu saía atrasada, um carro me dava uma fechada e eu ia atrás, corria e fazia a mesma coisa. Ele me dizia: “Não faz isso, mãezinha, vamos fazer o seguinte, vamos rezar uma Ave-Maria por ele, pra que Deus ilumine os caminhos dele e faça-o ser uma pessoa melhor”. Com essa maneira dele ser eu até parei de perseguir os outros e hoje eu rezo uma Ave-Maria no trânsito, quando alguém me prejudica.

A religiosidade dele era muito aplicada, vivida na prática do dia-a-dia, concreta. É muito fácil águem se dizer cristão, ir na igreja, rezar, ter o momento de oração na missa, mas ser uma pessoa que critica, que julga, pensa e fala mal dos outros. Ele não, ele vivia a fé completamente. Não julgava, não criticava.

Ele acordava e dizia que era o momento heroico, porque, obviamente em razão da doença havia dias em que ele não estava com disposição pra acordar, mas que pedia a Deus que o levantasse e o conduzisse para um bom dia.

Vinha para a sala, sentava no sofá e fazia as orações, as leituras. Acordava sempre uma hora antes dos compromissos para poder realizar o seu ritual de oração. Depois tomava o café e ia fazer o que tinha que ser feito.

Todos os dias ele ia à missa. Ou às 6h30min da manhã, na Trindade, ou às 17h, no asilo Dom Joaquim. Inclusive hoje eu estou tentando ir à missa todos os dias no asilo, pois me sinto muito bem naquela igreja, parece que sinto a presença dele.

À noite ele jantava, tomava banho, lia alguma coisa do serviço dele, depois sentava no sofá e ficava mais ou menos uma hora fazendo as suas orações.

Muitas vezes íamos para o centro de carro, rezando o terço, pois assim ele propunha.

Ele valorizava muito a família. Adorava juntar todos para fazer tertúlia no terraço ou na garagem.

Ele era muito diferente. Parecia que não veio para esse mundo para ficar muito tempo. Ele veio pra prestar uma contribuição, para fazer o bem, para abrir os olhos de muita gente. Eu me arrependo muito, eu devia ter aprendido muito mais com ele. Gostaria de ter a metade dos sentimentos dele. Não falo nem da parte da cultura, mas do ser humano. Ele sabia escutar e entender os outros como ninguém. Já visse alguém terminar um namoro e levar para a moça um buquê de rosas?

Tinha muito senso de humor.

Ele tinha uma necessidade muito grande de ser perfeito. Perfeição no sentido humano. Eu acho que ele queria ser uma pessoa completa para poder passar isso para os outros, para poder ajudar. Essa era a busca dele.

Ele dizia: “mãe, precisamos evangelizar”. Mas não era da boca para a fora, como a maioria das pessoas, ele tinha a vivência.

A busca dele era o bem-estar do outro, a ajuda, levar algo de bom para alguém.

Marcelo foi o melhor presente que eu ganhei de Deus.

Tem um funcionário meu que diz: “professora, se conforma, ele não era pra esse mundo”.

Mas pra mim, o mundo ficou sem cor. Eu tenho que continuar a ser mesma, porque meu filho Murilo não merece. E eu peço muito a Deus pra Ele me ajudar a não questionar.

A saudade não passa, muito pelo contrário, aumenta. Mas tenho que aceitar o desígnio de Deus.

O Marcelo está muito vivo dentro de mim.

Ele era realmente diferente.

No dia da sua morte, ele estava em coma e muito ofegante. Eu segurei na mão dele e disse: meu filho vai com a Nossa Senhora. A mãe tá te entregando pra Nossa Senhora… de agora em diante ela é tua mãe lá no céu..vai… e aí ele foi. Eu nunca pensei que eu fosse ter forças para dizer isso… mas eu senti que ele estava precisando disso…

Um dia eu tive um sonho que me encheu de paz. O Marcelo estava feliz em um lugar muito bonito e ele me dizia, cheio de entusiasmo: “Consegui, mãe, eu sou santo! Eu sou santo!”

1) Gostaria que a sra. falasse do jeito especial de ser do Marcelo. Como era ele na infância:

 

Dona Mary: Muito queridinho, uma criatura muito boa. A gente saía com ele pra passear, sempre pertinho da gente com muito carinho. Nunca me chamou de vó, me chamava de minha vozinha, e eu fazia tudo que era possível por ele, porque eu simplesmente o adoro. Uma vez ele era ainda pequeninho e a Leatrice estava dando de mamar para o Murilo e ele se engasgou(Murilo) e a Letrice brigou, ralhou com ele. O Marcelo pegou uma trouxinha, botou mamadeira, uma fraldinha e um bico e saiu porta afora dizendo assim. A moça chegou e perguntou: “onde é que tu vais, meu filho?” “Pois eu vou pra casa da minha vozinha.” E essas coisas todas, na hora dele fazer a faculdade ele vinha aqui pra casa e eu me levantava todo dia às 3h da madrugada, fazia lanche pra ele, ele via aquelas aulas todas na televisão, estudava, tomava o seu cafezinho que eu fazia sempre com muito carinho, com muito amor e tudo, e a locinha que ele usou neste tempo todinho permanece nas minhas coisas guardadas. Eu tenho uma porção de roupas dele aqui na minha casa guardadas com muito carinho e tudo. Um menino muito bom. Marcelo não era criatura para estar neste mundo. De jeito nenhum. Era uma criatura muito boa. Ele sentava naquele sofá rezando e eu chegava pra dizer alguma coisa pra ele e ele dizia assim: “Vozinha, não é assim, deixa pra lá, deixa, não estás me perturbando na oração, não, porque contigo estou muito bem, mas deixa vozinha, não te queixa, deixa pra lá isso, que não é bem assim. Nunca falava de ninguém. Ele sempre tinha uma palavra de perdão, conciliava pra cá, pra lá, dizia não é assim, essas coisas todas assim. Muito carinhoso com a minha irmã, muito bom, muito bom mesmo. Uma criatura, meu Deus, a gente pensa, pensa, pensa e diz como Deus, na sua infinita bondade pôde arrancá-lo do nosso seio. Mas os desígnios de Deus são impenetráveis, né, então a gente tem que aceitar. Quem somos nós pra recriminar os atos de Deus, verdade?

2) Por que a senhora diria que ele era especial?

Dona Mary: Em tudo. Em tudo. Em bondade, em caráter, em amizade, em amor ao próximo, tudo, tudo, tudo. Não tem no vocábulo português algo que defina.

3) O que a sra. teria pra falar da vida religiosa dele?

Dona Mary: Muito religioso, muito piedoso, uma criatura muito boa. Todo dia ele recitava o rosário aqui neste sofá, rezava e eu dizia: “querido, não te esquece da vó” e ele “eu não vou me esquecer da minha vozinha”. Muito carinhoso, muito bom. Até uma vez ele saiu, quando estava melhorzinho, em uma reunião ali perto do ginásio Catarinense, um cafezinho com diversos amigos e caiu um pouco a temperatura, então um dos amigos arrancou a jaqueta e botou nas costas para ele não se resfriar. Até hoje esta jaqueta está embrulhada em um armário, ninguém usa, estou só guardando esta jaqueta.

O que mais eu posso dizer do meu neto. Foi uma criatura extremamente carinhosa, muito bom. E no trabalho, nossa. Tanto que uma vez ele chegou aqui e disse, “vou te contar uma coisa. Imagine a sra. que tinha um preso e esse preso voltou novamente pra prisão.” Aí quando acabou a reunião lá dos juízes, com esse e com aquele, ele tirou a toga e foi na cela falar com o preso: “Meu filho, te regenera, tens tua mãe, tens teu pai, tens teus irmãos, tu és tão moço, te pega com Deus que Deus vai te ajudar, Deus vai te orientar. Se tiveres um amigo que não tem um caráter firme, um caráter bom, desvia dele e segue o caminho bom. Sempre na mão de Deus que tudo vai dar certo pra ti.” Esse caso que eu sei que ele falou pra mim.

4): E no período da doença. Como ele enfrentou?

Dona Mary: Eu ia duas três, quatro vezes lá. A comidinha dele eu que fazia. Levantava às 5h da manhã e fazia a comidinha dele e mandava nas marmitinhas porque ele não podia mais suportar a comida de hospital, né. Fazia a comidinha e mandava. Comeste, meu amor? “Comi”. E ele tinha um sinalzinho preto e eu me sentava do lado do braço dele, e ficava o tempo todinho do lado dele alisando aquele sinalzinho que ele tinha, com bastante carinho.

E também em outra ocasião que nós estávamos no hospital entraram dois advogados e aí disseram assim: “Marcelo, nós viemos aqui falar contigo pra ver o que é que tu achas que nós devíamos fazer com esta pessoa.” Aí o Marcelo disse assim: “Espera, deixa eu refletir um pouco. Quanto tempo vocês deram pra ele?” Eles disseram: “Ele está julgado em 5 anos a 6 anos.” Aí ele disse assim: “Mas ele é uma pessoa tão boa, aquilo foi um lapso que ele fez. Vê se vocês agora em outra reunião(pra dar o veredito, né) vocês botem para dois anos. Ele é tão moço e tem que fazer a vida dele, no convívio da família.” Esse também é outro caso de que eu lembro. Me marcou muito.

E da doença dele, eu sofri como um cão. Passava noites e noites em claro, rezando, pedindo a Deus, a Nossa Senhora, que vissem que ele era uma criatura tão boa, tão santa, para Deus levá-lo assim tão cedo. Uma criatura bonita, tão cheia de vida. Eu há muito tempo, agora já não escuto mais, mas até alguns meses atrás ele batia na porta e eu sentia direitinho. Abria a porta e não era ninguém.

Como aluno foi excelente, tanto na escola primária quanto na faculdade, sempre foram palavras elogiosas.

5) E como ele enfrentou o sofrimento?

Dona Mary: Muita resignação e muita coragem. Muita fé, muita fé. Eu perguntava: meu querido como é que tu estás? E ele dizia: “eu tô ótimo, vó, eu tô ótimo”. Quando ele saiu do hospital veio pra cá e eu modifiquei o quarto aqui, os amigos vinham visitá-lo, ficou quase um mês e meio aqui comigo, eu fazendo tudo pra ele, comidinha, fazendo e acontecendo. A Leatrice vinha todo dia, toda hora e todo instante. Aí então ele dizia, “se eu saio eu não volto” com um humor que é uma beleza, então em uns dois ou três dias teve aquela recaída, foi pro hospital aqui do Celso Ramos, ficou naquela coisa de vidro assim, a gente não podia ver, só no vidro, Deus me livre. Depois melhorou, foi pra Curitiba, fez transplante, fez isso, fez aquilo, o médico disse que ele tava curado, e pra gente ele tava no auge. Aí o pai levou o papel pra ele assinar e ele botou quinze dias, que dentro de quinze dias ele assumiria, e dentro de quinze dias ele já estava no outro mundo. Isso, minha filha, é duro.

6) E com os amigos, ele era um bom amigo?

Dona Mary: Ótimo, aqui em casa uma vez eles fizeram, pediram ordem porque esse prédio é muito chato e o síndico daquela época era muito chato. Aí eu pedi ordem, vieram os amigos, as amigas aqui, eu fiz um café gostoso, cantaram, brincaram, na maior alegria possível. Fiz isso umas duas ou três vezes. E vinham, quando ele estava aqui, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, vinham aí, ficavam, conversavam com ele. Quando estava bem disposto, ele levantava, quando não tava, ele ficava na cama, arrumadinha, e os amigos vinham visitá-lo muito.

7) A senhora lembra de algum conselho que ele tenha dado?

Dona Mary: Conselho?

Eu tinha segredos com ele que acho que ele nunca falou pra ninguém e eu tenho segredos que nunca falei pra ninguém no mundo. E ele também tinha. Eu desabafava com ele porque eu não tenho ninguém pra desabafar, a única pessoa era minha irmã, mas agora ela tem Alzheimer, não tenho ninguém(…) então eu curto sozinha, ou então às vezes eu falo com ele: Marcelo, o que vc acha? Aí eu falo assim com ele. Eu durmo com ele toda noite embaixo do meu travesseiro e tenho uma amiga do lanche, que gostava muito dele e então ela me diz: “Dona Mary, eu não posso me lembrar do Marcelo, me dá uma tristeza que a senhora não imagina” ela começa a falar assim. Então no último lanche que nós tivemos ela disse assim, “tenho uma coisa pra contar pra senhora. Eu tava pra fazer um negócio, uma arrumação”, qualquer coisa que eu não me lembro que coisa era, e ela olhou a fotografia do Marcelo e disse “Marcelo, vem pro meu lado, não te esquece de me ajudar, hein? Será que não vai dar certo, Marcelo? Será que não vai dar certo?” E ela disse que aquilo, foi, foi, foi que ela tá até hoje, pra ver. Tudo isso.

8) E no período final da vida dele, a senhora lembra dele ter se queixado?

Dona Mary: Nada. Muita resignação, muita fé em Deus, muita, muita, muita. Nunca, nunca ele disse alguma coisa contra Deus. Eu não, eu já brigo(…)e ele “vozinha, por favor vozinha, não faz assim”. Mas ele, não, sempre com resignação, muita fé, mas muita fé. A fé dele era inabalável, inabalável.

9) A senhora lembra de algum conselho que ele tenha dado nos momentos finais da vida?

Dona Mary: Ele dizia pra mim sempre: “vó, eu quero dizer uma coisa pra ti, eu tenho muita pena de ti, pois tu és uma criatura muito boa(…) então quando fizerem as coisas contigo, deixa pra lá, vozinha, não liga, vó, sê superior, entrega nas mãos de Deus, entrega nas mãos de Deus que é a melhor coisa que tu fazes.”

Agora, um dia antes, quando ele quase nem falava, ele já tava em coma e eu não sabia, não sabia porque eles não me contam nada(…)aí como eu tava dizendo, eu fiquei lá, fiquei lá o tempo todinho na beira da cama dele, com a mão agarrada nele assim e falando com ele: responde a vozinha, não vais falar, querido? Mas eu não sabia, não tinham me dito. Quando eu fui de tarde outra vez com a minha filha no hospital, dentro de quinze ou vinte minutos, ele se foi.

Que foi dura a cana, foi. Muito dura a cana. O que eu passei, não foi fácil.

10) E o que ficou dele, pra senhora?

Dona Mary: Tudo. As boas ações, os momentos de conversa(…), falava, desabafava com ele(…), tudo, tudo, tudo. Era uma pessoa, te digo no bom português, fora de série. Não é por ser meu neto, não, mas é uma criatura muito querida. Abalou muita gente, muitas, muitas pessoas. Todas as minhas amigas que conheciam ele ficaram arrasadas, e diziam, meu Deus como pode ser isto, meu Deus como pode? Eu fiquei meio doida, pensar em nunca mais ver aquela pessoa na vida, só por fotografia. Meu Deus(…).

11) O que o Marcelo mais buscava na vida?

Dona Mary: Estudo e religião. Primeiro de tudo era a religião, depois era o estudo. Toda hora, quando ele não estava rezando, ele estava com um livro, vendo e acontecendo, examinando, lendo aqueles processos, tudo, tudo.

Dona Mary: Eu fui a casa dele, ele me chamou e me pegou pela mão e disse, isso depois dele ter feito operação e tudo, disse: “olha o que eu fiz, custou caro”, era um móvel, uma estante, ali então ele botou todos os livrinhos, todos os santinhos dele. E eu disse: Marcelo, como é que vais estudar com tudo isso? E ele dizia “vó, eu tenho que deixá-los aqui, porque eles também cooperaram comigo e para me ajudarem”.

Aí então, eu falando com a Leatrice, por que tu não daí daqui, vai pra cidade, vai ser muito melhor pra ti. E ela disse: “eu não saio pelo seguinte, eu não quero desmanchar o quarto do meu filho, não quero desmanchar”. Então está tudo como ele deixou. Os santinhos, tudo, tudo, tudo.

12) Antes de ficar doente, qual era a rotina dele, desde o momento em que acordava até a hora de dormir? Como preenchia o dia?

Dona Mary: Estudando, nunca deixou de estudar. Ia diariamente à missa, à sua comunhão. Dava a comunhão na Igreja dos Ingleses. Era uma criatura que procurava ajudar os outros, de uma maneira ou de outra. Nunca se perguntou ou se falou uma coisa pro Marcelo que ele dissesse: não dá. Em absoluto. Sempre, sempre, sempre.

Eu tinha um consórcio, e eu tinha um carro. Não sou rica, mas miserável também não sou. Aí eu dei o carro pro Marcelo. E ele disse: “vó, deixa mais alguns anos, eu vou te retribuir o carro com um passeio, nós vamos à Europa”(…) Muito querido o meu neto(…) É muito difícil a gente encontrar hoje em dia pessoas assim, boas, humanas, caridosas, existem, mas está muito difícil.

13) A senhora diria que ele tinha o comportamento de uma pessoa santa?

Dona Mary: Impecável, em tudo. No se vestir, sempre com simplicidade, no jeitinho dele. Foi uma perda, só Deus que sabe.